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Transtornos depressivos e capitalismo contemporâneo

Richard Masoner, Public domain, via Wikimedia Commons
Rafael Gonçalves
16/04/2024
Elton Corbanezidepressãosaúde mentalcapitalismoneoliberalismofichamento

Fichamento do artigo "Transtornos depressivos e capitalismo contemporâneo"1 de Elton Corbanezi.

Definição da depressão psicodinâmica (~psicanálise) -> padronização etiológica (DSM-III)

Diferentemente das duas versões anteriores, a terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III), da Associação Psiquiátrica Americana (APA), apresenta um novo paradigma psiquiátrico que altera radicalmente o modo como a psiquiatria ocidental compreende os transtornos depressivos. Se antes, sob a influência psicodinâmica, a depressão era considerada de acordo com a etiologia e o contexto dos sintomas e se baseava na dicotomia neurose e psicose e (ou) reativa e endógena, a abordagem inaugurada pelo DSM-III em 1980 pretende descontextualizar os sintomas e desconsiderar a etiologia, de forma a padronizar a prática diagnóstica e a produzir dados cientificamente confiáveis. Para a nova clínica sindrômica e descritiva, não importa mais – ao menos em tese – se os transtornos depressivos são endógenos, exógenos ou psicogênicos. (p. 335)

Não-causalidade biológica da depressão

Como se sabe, a causalidade biológica da depressão ainda não é manifesta, dado que a síndrome prescinde, até nossos dias, de marcadores biológicos efetivos. Ou seja, apesar da existência de indicadores biológicos não específicos – tais como anormalidades do sono encontradas por meio de polissonografia, desregulação de sistemas de neurotransmissores, alterações de neuropeptídios, de hormônios e de fluxo sanguíneo cerebral –, as versões mais recentes do DSM asseguram que sem lhantes evidências são insuficientes para constituir a fisiopatologia específica da depressão (APA, [2000] 2002, p. 351-352; APA, 2013, p. 165). A despeito da assertiva e da pretensa eliminação de pressupostos etiológicos que constituem a inovação clínica e metodológica fundamental estabelecida pelo DSM-III, a predominante ação terapêutica e neuroquímica de antidepressivos visa, especialmente, a recobrir o déficit de neurotransmissores, que operam, então, como causalidade latente, independentemente das circunstâncias desencadeadoras do transtorno, as quais os DSM-I e II julgavam necessário compreender. (p. 335)

Definição da depressão pelo uso de antidepressivos

Depreende-se dessa prática, portanto, a prevalência da concepção atual de depressão como desequilíbrio neuroquímico, proveniente do que se convencionou designar “prova terapêutica”, que consiste em aferir a causalidade da patologia a partir do efeito de antidepressivos como os Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRS), os Tricíclicos e os Inibidores de Monoamina Oxidase (IMAO). Isto é, se a eficácia do mecanismo de ação de antidepressivos reside no aumento de disponibilidade de serotonina, noradrenalina e dopamina para receptores pós-sinápticos, é o déficit de tais neurotransmissores – especialmente da serotonina – que constitui, por decorrência, a causalidade da síndrome; daí a ideia corrente de que são os antidepressivos que definem a depressão. (p. 335-6)

Paradoxo da prática psiquiátrica pretensamente ateórica ao negar marcadores biológicos da depressão e, ao mesmo tempo, depender deles

Associada ao desenvolvimento da psicofarmacologia, a psiquiatria contemporânea – pretensamente ateórica e descritiva – apresenta, pois, o seguinte paradoxo: ao mesmo tempo em que registra a ausência de marcadores biológicos em diversos transtornos mentais, como se lê na versão mais recente do manual, o DSM-5 (APA, 2013, p. 21), sua prática clínica crê na existência deles. Diante disso, deve-se notar, de partida, como a “abordagem ateórica” da depressão preconizada desde o DSM-III implica uma prática clínica e terapêutica que indica a parcialidade da concepção: em vez de problema existencial, a depressão se reduz a uma disfunção neuroquímica. (p. 336)

Objetivo: mostrar as relações entre evoluçao da nosologia psiquiátrica da depressão e das demandas do capitalismo contemporâneo

Procedendo assim, pretendemos mostrar, por fim, de que maneira a evolução da nosologia psiquiátrica da depressão – ou seja, o estabelecimento de diversos subtipos do transtorno – pode se relacionar com as demandas do capitalismo contemporâneo, para o qual, a despeito de sua variedade de formas em diferentes contextos de desenvolvimento, a depressão parece constituir-se efetivamente como um problema de ordem epidêmica. (p. 336)

Critérios relacionados a sofrimento ou prejuízo no funcionamento social/ocupacional

O DSM-IV-TR apresenta ainda outros quatro critérios diagnósticos, entre os quais destacamos dois que são inéditos em relação ao DSM-III-R.3 O primeiro (critério C) é que os sintomas devem causar “sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes do indivíduo” (APA, [2000] 2002, p. 355). Como se vê, tal critério estabelece absoluta conformidade com a função operacional do conceito de transtorno mental, cuja definição é o sofrimento e a disfunção ou prejuízo na capacidade de desempenho nas relações ocupacionais, sociais, interpessoais e familiares. De acordo com Horwitz e Wakefield (2010), esse critério de transtorno é especialmente problemático no caso da depressão, uma vez que tanto o sofrimento quanto o prejuízo funcional, social ou ocupacional podem decorrer de situações críticas de perdas às quais o indivíduo reage com tristeza intensa, fadiga, insônia, entre outros sintomas depressivos que, contextualizados, não poderiam ser considerados patológicos. Outra adição significativa em relação ao DSM-III-R é o critério E que inviabiliza o diagnóstico, caso os sintomas sejam provenientes de luto no período de dois meses. Embora o DSM-III-R já ressaltasse que “... a perturbação não é uma reação normal à morte de uma pessoa amada...” (APA, [1987] 1989, p. 238), essa versão não especificava a duração do luto normal, como estabelece a edição subsequente. (p. 337)

Sobre o aumento da depressão e a mudança de critérios classificatórios

Sob o risco de reduzir a credibilidade científica e médica do Manual, uma decisão como essa fortalece, no entanto, o prognóstico sombrio da OMS, dado o aumento expressivo da quantidade de diagnósticos falsos positivos que o novo conceito de depressão deve ocasionar.6 Porém a fabricação da ideia de epidemia depressiva pode resultar não apenas do excesso de diagnósticos potencialmente incorretos que provêm, no contexto clínico, do afrouxamento dos já muito soltos critérios diagnósticos que definem a depressão.7 Tal ideia alarmante é também apresentada e divulgada por meio de pesquisas epidemiológicas, cujos questionários são comumente aplicados por leigos, treinados para desconsiderar o contexto dos sintomas, que serão depois contabilizados impessoalmente e de forma computadorizada, como mostram Horwitz e Wakefield (2010, p. 147-169), para os quais o boom da depressão, a partir dos anos 1970 e 1980, se deve, sobretudo, ao modo como a síndrome passou a ser concebida e diagnosticada para além do contexto hospitalar. Ora, do ponto de vista lógico, não há dúvida de que a mudança nas determinações do conceito de depressão modifica sua extensão;8 ainda que haja uma nota advertindo cautela médica e bom senso no julgamento clínico, a dignidade humana do luto normal se torna, então, refém de diferentes Simões Bacamartes que podem interpretá-la segundo seus próprios interesses e perspectivas.9 (p. 338-9)

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Cartografada a concepção de transtornos depressivos nos manuais psiquiátricos vigentes, pode-se afirmar que um dos critérios fundamentais estabelecidos para verificar a existência de semelhantes transtornos se associa a uma essência do ethos contemporâneo. Em transtorno disfórico pré-menstrual, por exemplo, lê-se uma indicação que se repete constantemente no Manual: o transtorno “... deve ser considerado apenas quando os sintomas interferem acentuadamente no trabalho ou na escola ou em atividades sociais costumeiras e relacionamento (por exemplo, evitar atividades sociais, redução da produtividade e eficiência no trabalho ou na escola)” (APA, [2000] 2002, p. 723). Em outras palavras, diante da ausência persistente de achados laboratoriais que comprovem a efetividade de determinados transtornos mentais, como no caso da depressão, é a incapacidade social e produtiva que os caracteriza e os define segundo diferentes ordens e combinações de duração, frequência e intensidade dos sintomas. Tal critério não seria problemático em si, se não vivêssemos em uma lógica social na qual o constante aprimoramento da eficiência, da produtividade, da autorrealização e do desempenho atua como princípio normativo, restringindo, assim, cada vez, mais o que define a normalidade. Para nós, não é sem razão que a ramificação sistemática dos transtornos depressivos – que se multiplicam e variam em torno da “condição clássica” (APA, 2013, p. 155) – produz categorias que tangenciam sempre a normalidade. Para compreender a existência do ethos que se dissemina paralelamente a essa flexibilização classificatória da depressão, analisemos uma teoria central que se difundiu – tal qual o DSM – do neoliberalismo norte-americano para o mundo ocidental capitalista: o capital humano. Tal teoria, colocada progressivamente em prática desde os anos 1960, pode nos auxiliar a compreender a ideia corrente de epidemia depressiva no capitalismo contemporâneo.17 (p. 343)

Capital humano

Elaborada nos anos 1960, a teoria do capital humano serve, em um primeiro momento, como modelo explicativo para a riqueza econômica da sociedade norte-americana no pós- -guerra.19 Constatando que categorias centrais da economia política clássica – tais como terra, capital e tempo de trabalho – não permitiam explicar a opulência do período, economistas como Schultz propõem que o desenvolvimento e o aprimoramento de qualidades e capacidades humanas inatas ou adquiridas exercem um papel econômico fundamental. Mais tarde, o investimento em capital humano mediante níveis educacionais formais e informais se tornará o modelo explicativo da disparidade existente entre sociedades liberais avançadas e sociedades terceiro-mundistas (Foucault, 2008, p. 318-319; López-Ruiz, 2007, p. 62, 199, 220). Além de explicação econômica, a teoria do capital humano exerce ainda uma função política indispensável no contexto da Guerra Fria: trata-se de mostrar ao outro lado da cortina de ferro como certa forma de investir em educação, ciência, tecnologia e saúde constituía a supremacia do capitalismo como modelo socioeconômico (López-Ruiz, 2007, p. 61-62). (p. 343-4)

Reintroduzindo o trabalho no campo da análise econômica, os teóricos do capital humano realizam uma transfiguração da categoria de trabalhador que afeta, de modo direto e extensivo, a maneira como os homens devem conduzir suas próprias vidas. Em vez de trabalhadores assalariados que vendem aos donos dos meios de produção sua força de trabalho quantificada homogeneamente por meio do tempo empregado na atividade, todos os indivíduos devem se conceber e se conduzir indistintamente como proprietários de determinadas qualidades que lhe são próprias, heterogêneas, intangíveis e até mesmo inalienáveis, tais como a inteligência, a criatividade, a motivação, a iniciativa individual, a persistência, a flexibilidade relacional, a comunicação, entre outras características louvadas em nossa atualidade. Associadas a competências técnicas que podem ser igualmente adquiridas mediante investimentos sistemáticos, é o conjunto dessas capacidades que determina o desempenho dos indivíduos, conforme a quantidade de capital humano acumulada. Ressalte-se que, em função da heterogeneidade do capital hu mano, os teóricos enfrentam dificuldade tanto para quantificar o seu acúmulo real como também para calcular o retorno efetivo de investimentos que a sociedade, as instituições, as corporações, a família e os próprios indivíduos realizam no decurso da vida. De todo modo, valendo-se dos termos acurados de Foucault (2008, p. 308-316), pode-se dizer que é o acúmulo de capacidades que possivelmente torna o indivíduo uma “competência-máquina”, que produzirá, assim, mais “fluxos de renda”, uma vez que, para os economistas neoliberais da Escola de Chicago, o salário consiste no rendimento de um capital específico, o humano. (p. 344)

Trabalho -> capital; trabalhador -> capitalista

Tratando esquematicamente a construção teórica dos neoliberais norte-americanos, insistamos na ideia central atinente à transformação de categorias clássicas como “trabalho” e “trabalhador”. Para a lógica inerente à teoria do capital humano, o trabalho se converte em capital e o trabalhador, em capitalista. É Harry G. Johnson quem explicita que o trabalhador, em uma economia industrial avançada, é tipicamente um capitalista, dado que seus próprios meios de produção, heterogêneos e intangíveis, são sistematicamente produzidos por formas permanentes de investimentos. Daí a ideia do economista da Escola de Chicago de que o trabalhador é “um meio de produção produzido” e “um item de equipamento do capital” (López-Ruiz, 2007, p. 61, 193, 220-221). Não é difícil perceber, assim, como a teoria do capital humano promove todos, indistintamente, à categoria de capitalistas de si mesmos: afinal, a administração do próprio capital humano implica saber quando, onde e como investir, tal como procedem os investidores de capital financeiro. (p. 344)

Teoria do capital humano como produtora de consumo

A partir do que designa “deslocamento conceitual valorativo”, López-Ruiz (2007) – em pesquisa que mostra a gradual disseminação da teoria do capital humano em diferentes sociedades capitalistas, incluindo aí o modo de vida de executivos de corporações transnacionais no Brasil – faz notar como a teoria do capital humano converte ainda diferentes formas de consumo em investimento. É que os indivíduos, para se manterem socialmente valorizados e economicamente produtivos e rentáveis, segundo a lógica concorrencial determinada pelo mercado, precisam perseguir incansavelmente o imperativo “investimento-crescimento”. Não são apenas os investimentos em educação formal – tais como escolarização, cursos profissionais e idiomáticos, especializações e programas de treinamento no trabalho – atendem tal demanda; as relações de amizade, o tempo de lazer, o tempo de afeto dedicado aos filhos, a possível constituição do equipamento genético deles mediante a escolha do parceiro conjugal adequado, até, evidentemente, o cuidado com a própria saúde constituem formas de investimento cujo efeito esperado é a rentabilidade futura. Daí a insistência de Foucault (2008), nas aulas dedicadas ao neoliberalismo norte-americano, de que a ideia fundamental da teoria do capital humano reside na extensão e na aplicação da racionalidade econômica e de mercado a todo um conjunto de fenômenos sociais e de comportamentos individuais concebidos até então como não econômicos (e.g.: criminalidade, casamento, educação de filhos, tempo de afeto). Através dessa “economização” de todo o tecido social,20 a economia se torna “programação estratégica da atividade dos indivíduos” (Foucault, 2008, p. 307). Desse modo, é o mercado, como regulador geral da sociedade, que define o consumo como investimento ou não. (p. 344-5)

Progressivamente, constitui-se, assim, a nova ética do homo oeconomicus contemporâneo. Ao contrário do modelo clássico, que se caracterizava principalmente por relações de troca em uma sociedade mercantil, o homo oeconomicus contemporâneo não apenas aplica a racionalidade econômica a todas as relações como assume a forma empresa como um modo de existência que orienta sua relação com o trabalho, com a propriedade privada, com o casamento, com a família, com seu grupo, com o tempo, com o futuro e, sobretudo, consigo próprio. Para Foucault (2008, p. 203, 331-332), se o homo oeconomicus retorna dessa maneira, é porque a multiplicação da forma empresa no tecido social inteiro constitui o escopo da política neoliberal. Nos termos do filósofo, em vez de uma “sociedade supermercado”, regulada pela troca mercantil, o neoliberalismo funda uma “sociedade empresarial”, que torna a dinâmica concorrencial de mercado o impulso vital das instituições e corporações tanto quanto dos indivíduos propriamente ditos. (p. 345)

Cultura psicológica neoliberal ~ sociedades de controle

Na qualidade de empresa múltipla e contínua, o indivíduo deve perseguir o autoinvestimento e a formação permanente como os meios que o modulam adequadamente para o mercado, não se esquecendo, porém, que é o próprio mercado que determina o valor de tais meios. Não é à toa que termos como “formação permanente” e “modulação” são empregados precisamente por Deleuze (1992, p. 219-226), em seu célebre texto prognóstico, no qual relaciona a noção de “sociedades de controle” ao espraiamento social da forma empresa, que substitui a função da família e da escola, instalando-se no coração do humano. É que, diferentemente de procedimentos disciplinares que “moldavam” os indivíduos em instituições, a noção – “terrível”, no entender de Deleuze (1992, p. 216) – de “formação permanente” os “modula” para o mercado, essa entidade abstrata e universal do capitalismo, que produz, fantástica e concretamente, riqueza e miséria. Daí a necessidade política de se questionar para que os jovens solicitam, insistentemente, motivação, estágios e formação permanente.24 Portanto, ao contrário da suposta liberdade humanista, que a forma mais sofisticada e avançada do capitalismo pretende promover, assiste-se a uma nova servidão voluntária: ainda que os investimentos se dobrem sobre os próprios indivíduos, é em função do mercado que o acúmulo de capital humano deve ser programado, executado e mobilizado. É dessa maneira que a racionalidade governamental do neoliberalismo reduz e une todas as dimensões da vida dos indivíduos e seus diferentes modos de existência à esfera econômica do mercado. Para Boccara (2013), antropólogo pesquisador do multiculturalismo neoliberal, essa é a base do neoliberalismo “diferencialista”, em suas variadas formas e contextos. (p. 346)

A vida como negócio

Entende-se, assim, o diagnóstico atual de que a vida se torna business, isto é, a ideia de que a vida se reduz, em nossos dias, à pró pria carreira, tornando ambas indiscerníveis tanto em países desenvolvidos quanto em desenvolvimento (López-Ruiz, 2007; Stroud, 2014).25 Tal atributo parece ser o efeito de uma teoria econômica incorporada gradativamente por doutrinas da administração no decurso dos anos 1990 e difundida por todo o tecido social como uma forma moralmente correta e economicamente conveniente de conduzir a vida. Para nosso propósito, um aspecto relevante desse percurso demonstrado por López- -Ruiz (2007) a respeito da teoria do capital humano reside na função política adquirida por uma verdade científica. Se, em um primeiro momento, a teoria pretendia apenas explicar cientificamente a riqueza da sociedade norte-americana no pós-guerra, ela logo se converte em um conjunto de princípios, valores e crenças que orienta a conduta dos homens.26 Coerente, a tese do sociólogo se apresenta inequivocamente: a partir de uma teoria econômica e científica, constitui-se uma ética social que caracteriza o atual espírito do capitalismo. É por isso que a teoria do capital humano não interessa em si mesma, mas apenas na medida em que embasa a maneira como o indivíduo racionaliza sua relação com o mundo, com os outros e consigo. (p. 346)

A noção de desempenho e a depressão como fracasso

No centro da concepção empresarial da vida, encontra-se a noção de desempenho. Passível de determinação mediante a quantidade de capital humano acumulado, o desempenho funciona atualmente como medida do sucesso e do fracasso dos indivíduos em uma sociedade que se compõe, pois, de “vencedores” e de “perdedores”. Tanto é assim que, no campo específico da nosologia psiquiátrica da depressão, a ausência ou a disfunção na capacidade de desempenho se apresenta como um critério fundamental para verificar a existência de transtornos depressivos, cuja sintomatologia envolve efetivamente a fadiga, a lentidão psicomotora, a dificuldade comunicacional, a ausência de energia, de motivação, de prazer, de expectativa e de projetos futuros, entre outros déficits. É nesse sentido que a epidemia depressiva pode ser a expressão mais acabada de uma legião de “fracassados” que não suportam a responsabilidade inscrita na ideia de autorrealização constante, que está no cerne da biopolítica da saúde mental. Se o excesso é constitutivo da dinâmica neoliberal – como Santos (2007, p. 11-13, 21) mostra a partir da atualização da ópera Don Giovanni por Michael Haneke –, a depressão, como déficit, insuficiência e desvalorização da vida, se apresenta logicamente como um problema que inviabiliza a manutenção, a aquisição e o exercício do capital humano. Ou seja, para a lógica neoliberal predominante nas sociedades capitalistas ocidentais contemporâneas, a depressão é puro desinvestimento individual e coletivo, ainda que outros mercados se beneficiem com ela, nomeadamente a indústria farmacêutica e as técnicas terapêuticas diversas. Desde o déficit de neurotransmissores até a extenuação energética em todos os níveis, a depressão representa, em seus variados graus, a impossibilidade de realização da saúde otimizada que se depreende de discursos institucionais e médicos. Invertendo os sinais, não soa estranho observar que o “episódio hipomaníaco”, embora solicite atenção psiquiátrica, seja apresentado tacitamente no DSM-IV-TR como um estado quase socialmente desejado, uma vez que “[a] alteração no funcionamento em alguns indivíduos pode assumir a forma de um aumento acentuado na eficiência, realizações ou criatividade” (APA, [2000] 2002, p. 362). O problema é que essa acentuação patológica da eficácia e das capacidades também pode causar algum prejuízo social ou ocupacional, bem como indicar o desenvolvimento da euforia descontrolada e possivelmente psicótica, típica do episódio maníaco propriamente dito.31 (p. 347)

Tecnologias médicas contemporâneas como tecnologias de otimização

Dada a relevância da noção de desempenho, tecnologias médicas contemporâneas se convertem em tecnologias de otimização, cujo objetivo primordial não é mais apenas curar doenças, mas aperfeiçoar as capacidades dos indivíduos. Ainda que restritas às democracias liberais avançadas – isto é, ao “ocidente rico”32 –, tais tecnologias constituem atualmente o que Rose (2013) designa como “a política da própria vida” (the politics of life itself). Para o sociólogo inglês, o problema da biomedicina molecular, em nossos dias, não consiste especialmente em normalizar e restituir a saúde; trata-se, antes, de superar barreiras biológicas, intervir em condições pré-sintomáticas e aperfeiçoar capacidades como força, resistência, longevidade, atenção, inteligência: é o que se observa desde o uso variado da genética até o consumo plástico de psicofármacos. (p. 347-8)

Com efeito, entre outras formas de investir em capital humano – tais como escolarização, cursos idiomáticos e profissionalizantes, treinamento on-the-job, atenção médica, ingestão de vitaminas, aquisição de informação sobre o sistema econômico –, pode-se incluir o consumo de psicofármacos. Sem pretender discutir a polêmica se o medicamento seria capaz de produzir um novo self – o que parece pouco provável –, o fato incontestável é que seu uso pode estimular capacidades, se não inexistentes, ao menos latentes. (p. 348)

Antidepressivos como promotora da ação -> constituição de uma subjetividade neoliberal

Nesse sentido, o uso cosmético de antidepressivos, segundo a fórmula popularizada pelo psiquiatra estadunidense Peter Kramer, constituiria um direito dos indivíduos em sociedades democráticas liberais, em que todos supostamente gozam de liberdade para produzir bem-estar e para otimizar suas capacidades, tornando-se better than well. Autor de Listening to Prozac: a psychiatrist explores antidepressants drugs and the remaking of the self, Kramer (1993) sustenta que o uso de antidepressivos serve tanto para aliviar os sintomas do transtorno quanto para criar condições para que as pessoas realizem com sucesso suas atividades, produzindo e otimizando, por conseguinte, o bem-estar. É por isso que, para Ehrenberg (1998, p. 203), segundo o qual a depressão é uma doença da insuficiência da capacidade de ação e de iniciativa, a pílula promovida pelo best-seller do psiquiatra estadunidense pretende mais estimular a ação do que produzir a felicidade, como as traduções francesa e brasileira do título da obra dão a entender equivocadamente.33 Ora, em vez (p. 348)

Com esse raciocínio, St-Hilaire (2009) mostra, de forma convincente, como o uso cosmético e plástico de antidepressivos – outrora designados “energizantes psíquicos” – permite ajustar os indivíduos às demandas sociais contemporâneas, ao mesmo tempo em que as evidencia. Mais do que conspiração de uns sobre os outros, trata-se do atual processo de constituição da subjetividade em sociedade. Nesse sentido, o discurso da saúde, segundo o sociólogo, constitui “o lugar pelo qual se ordenam as exigências sociais”. E o que assistimos hoje é ao “... aprimoramento de nossas capacidades, um melhor ajustamento às exigências da vida à qual aspiramos ...” (St-Hilaire, 2009). (p. 348)

Autonomia como norma social ~ depressão como insuficiência (~Kehl)

A centralidade da noção de desempenho permite perceber que, para além do sofrimento indescritível da depressão severa, tal como testemunha o escritor Willian Styron (1991), a “epidemia” do transtorno é instaurada por outro temor: o da crise de incapacidade35 – sabe-se, afinal, que a monstruosidade para o capitalismo consiste na improdutividade. Próximo ao aspecto sociológico da tese de Kehl (2009),36 Ehrenberg (1998) já sustentara que o aumento dos casos de depressão resultava da conquista de autonomia dos indivíduos após os movimentos contestatórios do final dos anos 1960. Para o sociólogo francês, em vez do modelo disciplinar – no qual a permissão ou a interdição estabelecidas pela lei constituem o fundamento do conflito psíquico próprio da concepção freudiana das neuroses –, os indivíduos experimentam, desde então, a autonomia como norma social inédita que lhes solicita, sem limites, a capacidade de ação, a iniciativa individual, a escolha pelo modo de vida e a responsabilidade. É por isso que, para o autor de La fatigue d’être soi, a depressão consiste, antes de tudo, numa patologia da insuficiência, típica de uma sociedade que atribui ao indivíduo, exclusivamente, a responsabilidade pelo sucesso social. Daí a ideia de Ehrenberg (1998, p. 129, 236) de que tudo se passa atualmente como se assistíssemos à ascensão do indivíduo soberano de Nietzsche: porém, em vez de um modo de vida selecionado e destinado a alguns “fortes”, segundo a tipologia nietzscheana, tal indivíduo sobrevém democraticamente massificado.38 Em que pese o as pecto controverso da associação do indivíduo contemporâneo ao além-do-homem nietzscheano, é preciso reter a ideia fundamental do sociólogo francês de que o transtorno depressivo deve ser percebido especialmente em termos de incapacidade de ação, ou seja, a depressão é menos paixão triste do que ação insuficiente. (p. 348-9)

Sinergia entre concepção psiquiátrica e teoria econômica

Assim, uma sinergia política se constitui a partir de duas verdades científicas díspares: a concepção psiquiátrica dos transtornos depressivos e a teoria econômica do capital humano. Não obstante a tendência da natureza humana a desenvolver-se e aperfeiçoar-se, em tempos de capitalismo cognitivo, de economia imaterial, de sociedades de controle ou de biopolítica, é fundamental perguntar por que verdades e técnicas científicas e pretensamente neutras toleram, cada vez menos, sintomas tênues de sofrimentos cotidianos. (p. 350)

A análise minuciosa de como são descritos e apresentados os transtornos depressivos em manuais psiquiátricos contemporâneos dá a ver que a altíssima incidência da depressão pode relacionar-se também à laxidão de critérios diagnósticos e sua consequente patologização de sofrimentos mais brandos. Como vimos, os transtornos depressivos menos graves – ou seja, aqueles que gravitam em torno da condição nuclear, que é o transtorno depressivo maior – sempre tangenciam a normalidade, restringindo-a, assim, a parâmetros mais rígidos e normativos de desempenho, o qual, sublinhemos uma vez mais, funciona igualmente como critério diagnóstico ante a ausência de dados laboratoriais definitivos. Uma relação inequívoca se depreende dessa afirmação: um dos critérios fundamentais para constatar a efetividade de transtornos depressivos é precisamente o mesmo que o capitalismo, em suas formas neoliberais predominantes, exige insistentemente dos indivíduos. Se, por um lado, é preciso investir em si, como apregoa a disse minada teoria do capital humano, por outro, a definição do transtorno se dá mediante a incapacidade de fazê-lo. (p. 350)

Alargamento da noção de depressão ~ espírito do capitalismo

Anunciada desde os anos 1970, a ideia de epidemia depressiva parece tomar forma na medida em que a racionalidade científica e classificatória da psiquiatria se desenvolve, capturando cada vez mais condutas levemente incapacitadas, tristes e menos produtivas. Em outras palavras, a progressiva ramificação e a flexibilização dos critérios diagnósticos da depressão permitem que se territorializem condutas heterogêneas e singulares – com combinações diversas de sintomas relativamente banais e cotidianos – no lugar comum da classificação formal. Não se trata, com tal afirmação, de recusar, de forma inconsequente, a dimensão real da depressão como patologia que causa sofrimento, tampouco de negligenciar os aspectos biológicos e psíquicos que a envolvem. Queremos chamar a atenção para o fato de que a produção e o estabelecimento de diversos subtipos de depressão se relacionam diretamente ao déficit de atributos e de disposições que o atual espírito do capitalismo valoriza e solicita dos indivíduos. (p. 350)

Depressão como posição antinormativa

Não há dúvida de que, em relação à biopolítica da saúde mental – que incita os indivíduos à realização constante de suas potencialidades intelectuais, emocionais e laborais –, a depressão é fundamentalmente antinormativa: ao mesmo tempo em que é expressão do corpo indisciplinado (incapacitado, desenergizado, lento), desregula a homeostase populacional (improdutividade, custos, suicídio) e recusa, assim, palavras-chave de nossa época (motivação, comunicação, mobilidade, criatividade, velocidade, eficiência). É quando relacionada ao ethos contemporâneo predominante que a depressão parece tornar-se um problema gravíssimo: talvez não seja apenas o suposto déficit de neurotransmissores que cause o sofrimento, mas a impossibilidade de realizar valores e princípios que orientam o modo de vida dos indivíduos nas sociedades capitalistas contemporâneas. Associada sinergicamen- te ao modo de vida preconizado e disseminado pela teoria econômica do capital humano, a flexibilização classificatória da depressão não apenas contribui para a fabricação da epidemia depressiva como restringe a normalidade a padrões mais rígidos de desempenho, correspondendo, assim, à estratégia biopolítica da saúde mental, cuja função atual consiste – não de forma exclusiva – em otimizar as capacidades dos indivíduos. (p. 350-1)

Subjetivação do homo oeconomicus via práticas psiquiátricas e teorias econômicas

Em todo caso, em vez de pretender denunciar pura e simplesmente o aspecto capitalístico dessa medicina científica ocidental, procuramos evidenciar a subjetivação (leia- -se: modo de produção de existências) que se estabelece a partir da relação entre discursos médicos, institucionais, científicos e econômicos. E, nesse sentido, parece-nos que tanto o discurso positivo da saúde mental quanto o estabelecimento científico dos diversos subtipos de depressão podem contribuir para que o indivíduo se incline à autoexploração própria do homo oeconomicus atual: incorporando e naturalizando o discurso empreendedor, todos devem indistintamente produzir uma saúde otimizada, cuja consequência inevitável é a realização de potencialidades, capacidades e performances que assegurariam rentabilidade e empregabilidade futuras. É fato que, em todo espectro da vida social, assistimos à produção de um modo de vida assentado na realização individual. No entanto, diferentemente de um “cuidado de si”, que se dobra sobre o sujeito como autodeterminação e relação consigo, que resiste a códigos e poderes específicos, o cuidado exacerbado de nossos dias – um a mais de saúde – parece circunscrever-se majoritariamente às demandas do mercado. (p. 351)


  1. CORBANEZI, E. Transtornos depressivos e capitalismo contemporâneo. Caderno CRH, v. 31, n. 83, p. 335–353, ago. 2018.