Maquinações
Experimentações teóricas, fichamentos e outros comentários descartáveis

Por uma sociologia não-autocrática das máquinas

Rafael Gonçalves
06/05/2024
capitalismocibernéticatecnologiasociologiaLaymert Garcia dos SantosGilbert Simondon

Fichamento de "Por uma sociologia não autocrática das máquinas"1 de Laymert Garcia dos Santos.

Resumo

Versão condensada, editada e revisada por Laymert Garcia dos Santos, de anotações realizadas por Pedro P. Ferreira em sala de aula, em um notebook, durante as três primeiras aulas (realizadas nos dias 02, 16 e 30 de março de 2011) da última disciplina que Laymert ministrou no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) do IFCH/Unicamp: a “SO141 – Tópicos Especiais em Trabalho, Cultura e Ambiente II”, que ele dedicou exclusivamente às ideias de Gilbert Simondon, em especial à sua filosofia da individuação técnica e coletiva.

Simondon

Para mim, Simondon ajuda a entender o mundo em que vivemos, e também como vivemos nele. Muitos filósofos importantes leram Simondon (entre eles Herbert Marcuse, Gilles Deleuze e Jean-Fran-çois Lyotard). O pensamento de Simondon é absolutamente neces-sário para a Sociologia contemporânea, e a sua importância para as Ciências Humanas e Sociais contemporâneas só cresce. (p. 2)

A máquina, entre o humano e o não humano. Sociedade de humanos e não-humanos. [Maquínica].

O que isso importa para as Ciências Humanas? Os sociólogos pensam que vivemos em uma sociedade de humanos. Simondon, no entanto, sabia que não vivemos numa sociedade de humanos, mas sim de humanos com máquinas; sabia que é preciso olhar, não para os humanos em oposição aos não-humanos, mas para as maquinações que passam de um para o outro. O fato de que podemos pensar em maquinações diferentes para humanos e para não-humanos não significa que não possamos pensar, ao mesmo tempo, num nível comum a ambos. Por isso, para entender a sociedade contemporânea, é preciso pesquisar a relação humano-máquina (incluindo aí as relações humano-humano, humano-máquina, máquina-humano e máquina-máquina). Não interessa, porém, fazer a crítica das Ciências Humanas, bater em cachorro morto. O interesse não está mais em explicações (sobre o que já aconteceu), mas sim em implicações (sobre o que está por vir). (p. 2)

MEOT e ILFI

Como conceber, então, as Ciências Humanas após a morte do Homem? Seria preciso pensar em conjunto os modos de existência da máquina e do ser humano. A disciplina não se prenderá, portanto, aos moldes das Ciências Humanas, pois propõe pensar o deslocamento do pensamento pós virada cibernética. Vamos trabalhar sobretudo com as duas obras principais de Simondon (2005 e 2008): Du mode d’existence des objets techniques [MEOT] e L’individuation à la lumière des notions de forme et d’individuation [ILFI]. São obras fundamentais, pois abordam a individuação no ser físico, no ser vivo e no ser humano, e pensam o modo de existência dos humanos e das máquinas a partir de uma noção inovadora de informação. O fato de que atualmente tudo é cibernetizado, digitalizado, destaca ainda mais a centralidade contemporânea da noção de informação. (p. 3)

Objeto técnico entre o abstrato (pensado) e o concreto (efetivo). Modo próprio de leitura meta-objetiva.

O objeto técnico tem uma exis-tência real, mas esta existência é, ao mesmo tempo, concreta e pensada; é um pensamento concretizado. A técnica é a interface entre o abstrato e o concreto; o pensamento está dos dois lados. Minha sensação, ao ler Simondon, é de me deparar, ao mesmo tempo, com uma coisa muito concreta e muito abstrata. Como? Ora, a própria máquina é abstrata e concreta, simultânea e sucessiva, existe dentro de mim (na minha cabeça) e fora de mim (no mundo). O que existe objetivamente, lá fora, só existe pois foi pensado. Para pensar toda a complexidade objetiva da técnica é preciso pensar sobre esse pensamento, que é meta-objetivo; é preciso pensar sobre o modo de pensar sobre o objeto. Então, é comum, na leitura de Simondon, você começar a ler uma frase, mas depois precisar recomeçar, por não ter ficado concreto para você. Aí está o obstáculo. (p. 3-4)

Contexto: anos 50 -> pensar a informação (importância hoje)

É importante lembrar que Simondon escreveu nos anos 1950. Desde então, o processo se complexificou infinitamente. Quando Simondon escreveu, a eletrônica ainda estava restrita ao laboratório, não estava na vida cotidiana. Isso torna seu pensamento desatualizado? É interessante que a resposta a esta pergunta seja negativa. Como ainda podemos nos interessar pelo que ele escreveu? Ora, o fato é que ele ajuda a pensar inclusive aquilo que veio depois dele. Por um lado, existe uma enorme questão política em jogo (escravização). Por outro lado, estamos atualmente num mundo da informação, e Simondon pensou justamente o mundo da informação (e não o mundo da forma), esse substrato comum ao ser físico, ao ser vivo, ao ser psicossocial e ao ser técnico. (p. 4)

Se estamos na terceira revolução industrial, precisamos pensar as relações entre técnicas e tecnologias. A sistematização abstrata dos conhecimentos e das técnicas agenciados hoje já fundam uma tecnologia que precisa ser pensada. Eu nunca mais tirei Simondon da minha cabeça desde 1977, pois ele pensou sobre os problemas que são os nossos: o papel da informação na individuação de todos esses tipos de seres. Daí a importância contemporânea de Simondon para nós que vivemos em um mundo cada vez mais controlado por meio das tecnologias da informa-ção. Ele percebeu que havia uma nova revolução em andamento. Ele pensou o que hoje é banal, quando ainda não existia. É uma grande capacidade de compreensão. Espero que todos se apaixonem pelo pensamento simondoniano. (p. 4)

Dificuldade: técnica

Então, digo meio brincando, que a discussão aqui será "técnica", pois precisaremos enfrentar as dificuldades para entender esse capítulo II da "Primei-ra Parte", no qual são desenvolvidas as categorias fundamentais de "elemento", "indivíduo" e "conjunto". (p. 5)

Separação entre cultura e técnica

A cultura costuma ser tão dissociada da técnica no Brasil, que são até dois Ministérios separados no governo. Gilberto Gil foi gênio por tentar aproximar os Ministérios da Cultura (MC) e da Tecno-logia (MCT). Depois que Gil e Juca Ferreira saíram do MC, tudo se separou novamente.3 Simondon percebeu como a concepção francesa de cultura separa a técnica da cultura, e é importante no-tar como ele voltou para a Encyclopédie, e fez uma leitura muito especial dela, mostrando o seu papel e o seu valor político e social. Simondon, na verdade, critica a especialização através da idéia de uma nova cultura. Foi um corte com o Antigo Regime. (p. 5)

Cultura técnica e alienação técnica

Eu, por exemplo, não sei, e nem quero saber, como consertar o meu carro. Mas isso é ruim, pois estimula o automatismo. Esse Por uma sociologia não autocrática das máquinas|6|Idéias, Campinas, SP, v.13, 01-24, e022026, 2022era o conhecimento que a criança precisa saber. Saber consertar meu carro implicaria em conhecer a sua mecânica, mas também ter a sensibilidade para saber o que eu tenho que fazer. No meu carro, quando eu escuto um barulhinho estranho, eu tento ignorar, aumento o som para não ouvi-lo, mesmo sabendo que mais para frente eu terei um problema ainda mais grave. Mas o que significa esse recalcamento do som que a máquina está fazendo, e portanto daquilo que ela está me dizendo? Eu não quero ouvi-la nunca, nem quando está funcionando (pois deve ser silenciosa) e nem quando estraga (pois finjo que o problema não existe). Eu nego a sua existência. (p. 5-6)

No objeto estético, damos de barato que é preciso conhe-cer para fruir. Mas quando se trata do objeto técnico, agimos como se só precisássemos usar o objeto, como se não precisásse-mos conhecê-lo. Essa dimensão oculta (não pensada) do objeto técnico é a sua ontologia, o seu ser, o seu movimento interno, a direção do seu devir. Ele só pode atender às necessidades humanas (exteriores a ele) se elas corresponderem aos seus próprios movimentos internos. Só assim ele responde e atende. É preciso atentar às respostas do objeto técnico às nossas demandas. Essas respostas são o resultado de uma história, de uma evolução. Há uma relação entre a demanda humana externa e os movimen-tos internos do objeto técnico. Eu não posso pedir para um telefone dos anos 1950, que faça o que eu posso pedir para um iPhone. Ele não vai me responder. Isso não corresponde ao seu funcionamento interno. (p. 6-7)

Os exemplos de Simondon são centrais. Além disso, Simondon extrai pensamento do objeto técnico. É porque ele conhece bem o modo de funcionamento, e as transformações nesse modo de funcionamento, que ele pode passar de um mecanismo "x" para um "y", e dizer se tem ruptura ou continuidade, e enumerar toda uma série de nuanças e singularidades sobre essa passagem. É uma questão de falta de cultura de nossa parte, mas é também um efeito do aparente absurdo que é extrair pensamento do funcionamento. Isso, do ponto de vista metodológico, é fantástico. (p. 7)

Esse pensamento não é, em termos simondonianos, a priori: o pensamento é construído junto; não existe nada dado previamente; é da relação, do agenciamento (no sentido de Gilles Deleuze e Félix Guattari), da articulação, que ele tira o pensamento. Para fazer isso, ele precisa ter um olhar retrospectivo sobre a técnica anterior, olhando para trás, e perceber o que é continuidade e o que é ruptura, quais são as categorias com as quais pensar o objeto técnico. Ele extrai isso do próprio modo de existência, do funcionamento do objeto. (p. 7)

Filosofia autocrática ocidental

A individuação ocidental é a da ciência autoritária. Mas os problemas gerados pela tecnologia não são problemas da tecnologia, e sim de nossa relação com ela. Não devemos nos oporàs máquinas. Esse ressentimento que nutrimos com relação às máquinas é um ponto central, como prolegômeno à proposta de Simondon, pois mostra como ela não é trivial, não é fácil, pois é anti-automática para nós. Para Philip K. Dick, por exemplo, em seu seu texto de não-ficção sobre a lógica dos andróides (Dick, 1976), o controle da máquina sobre o humano existe, mas devemos resistir. Donna Haraway (1991) está dizendo algo parecido, pois quer ser ciborgue, mas de oposição. (p. 7-8)

Filosofia não-autocrática em Simondon

Simondon queria construir uma filosofia não-autocrática das máquinas. O filósofo notou que temos uma relação utilitária-instrumental com as máquinas, segundo a qual elas devem estar à nossa disposição. Esta é uma relação marcada pela dominação, do tipo senhor-escravo, sendo a máquina ora senhor (quando algo dá errado e ela nos domina), ora escravo (quando tudo dá certo e nós a dominamos). No entanto, Simondon mostrou que, encarar a máquina como escravo é a continuação da escravidão por outros meios. O suposto problema das máquinas "out of control" ["fora de controle"] (muito comum nas análises sociológicas e filosóficas) acaba legitimando a ideia de que precisamos dominá-las. Simondon afirmou que nossa relação com elas pode ser diferente, e muito melhor. Para isso, é preciso construir uma filosofia não-autocrática das máquinas, através do estudo dos modos de existência das máquinas, dos humanos e de sua relação. (p. 8)

O importante para Simondon é a relação. O seu pensamento é relacional e processual (apesar de falar em "essência"), e portanto desreifica o sujeito humano e o objeto tecnológico. Ele relaciona arte (estética), tecnologia e cultura. Mas por que a estética é impor-tante para pensar o que está faltando na tecnologia? E por que é importante pensar isso? Ora, pois ocorre dominação. (p. 8)

O oposto de uma relação de servidão seria uma que pensasse a especificidade do humano com relação à especificidade da máquina. Ou seja, todo o pensamento de Simondon gira em torno do problema do fantasma da dominação homem-máquina (um dominando o outro). Golem, Frankenstein, Robocop, toda essa linhagem de pensamento segundo a qual: ou somos dominados, ou devemos dominar as máquinas. (p. 9)

Esse é o nosso senso comum, Simondon não está exagerando. Por isso, em MEOT, ele fala de recalque, que é diferente de repressão. Na repressão você sabe que está sendo afetado, e sabe quem está afetando. No recalque não. É da natureza do recalque que este seja ligado a algo desconhecido, obliterado, mas existente – existente, mas inconsciente. Simondon está falando do retorno do recalcado, do retorno de algo que existia, que estava maquinando (no sentido de Deleuze e Guattari), produzindo efeitos, mas que estava oculto. A importância da distinção elemento-indivíduo-conjunto é trazer à tona o recalcado. Temos uma relação mal resolvida com a técnica. Há um retorno do recalcado, um Iluminismo-Enciclopedismo, no Simondon, mas também em Sigmund Freud. (p. 9)

Se nós estamos imitando a maquinação da máquina, então esse é um problema nosso – mais ainda, esse é "o" nosso problema –, não das máquinas. É por isso que precisamos de uma filosofia não-autocrática das máquinas. Não estamos pensando suficientemente as maquinações extra-técnicas dos humanos, que interagem com as maquinações técnicas das máquinas. Quem tem pensado sobre isso é o pessoal que pesquisa a questão da relação arte-tecnologia. Para um artista como Harun Farocki, por exemplo, a questão é a individuação da câmera e (junto com) a nossa. No caso dos xamãs yanomami, por sua vez, é toda uma tecnologia audiovisual que está em jogo. Eles podem ser chamados de simondonianos, pois querem explorar-experimentar o virtual enquanto tal, em lugar de sempre atualizar tudo aquilo do virtual a que eles tiverem acesso. Simondon permite pensar essa diferença entre nós e eles: ver o xamã como um tecnólogo excepcional que acessa coisas que a ciência moderna nem desconfia que existem. (p. 9)

Computação no povo Tarabu (Bolívia)

Quando você vê a mulher Jalq’a tecendo, nota que ela decide, na hora, o que vai tecer: a figura sai do fundo e volta; é altíssima computação, como se ela tivesse um software fabuloso na cabeça. É como o cartão perfurado do Jacquard – só que mais complexo, porque neste a imagem é parada, figura e fundo são destacados. Quando não há essa distinção, há um vai-vem constante: a passagem da imagem está acontecendo na mão, na cabeça e no tecido, tudo junto no momento em que ela está sendo feita. Há aqui uma complexidade operatória. Isso estava em desaparecimento, mas uma antropóloga chilena viabilizou um atelier para manter a prática, no qual pessoas podem comprar esses tecidos. A iniciativa foi bem sucedida, e é interessante notar que, diante da maior independência econômica das mulheres (tradicionalmente, apenas as mulheres se dedicam a essa atividade), os homens começaram a tentar produzir estampas também, mas eles não conseguem juntar figura e fundo – fica tudo separado. (p. 10-1)

O tecido Jalq’a é considerado artesanato; ninguém o conside-ra arte elaborada. Ademais, a tecelã terá que usar as mãos se quiser explicar o que faz – ela é uma artesã, no sentido simondoniano. No entanto, a questão da oposição entre um saber já teorizado e o saber do artesão (ligado diretamente ao conhecimento da matéria, operatório) é equivocada, pois não é oposição, e sim modos de relação com a técnica. A cultura não estava separada da técnica no mundo mágico. É isso que vai fazer Simondon questionar se a evolução é um avanço. Nas sociedades originais-mági-cas – onde o primeiro tecnólogo é o xamã –, arte, técnica e cultura não estão separadas. Assim, se os Yanomami seriam "crianças", na terminologia de Simondon, isso não é um julgamento de valor, e sim uma distinção conceitual. É de uma passagem do conhecimento operatório para um conhecimento teórico que se trata. O que veio antes não é pior do que o que veio depois. Tudo é fundamental. (p. 11)

Individuação-invenção x adaptação

Há uma diferença importante entre a evolução contínua (adaptação) e a evolução descontínua (individuação). É preciso pensar na relação entre concretização e margem de indeterminação: o importante na concretização do objeto técnico é transformar uma tensão negativa, uma incompatibilidade, em resolução. Quando isso ocorre, há uma mutação: algo que era incompatível (forças virtuais, potenciais), encontra uma solução positiva. É por aí, pela superação dos obstáculos, que as máquinas avançam e evoluem. Não se opõe aqui aperfeiçoamento e mutação de um ser: a mutação ocorre quando passamos de um aperfeiçoamento contínuo para um aperfeiçoamento descontínuo; a mutação é a evolução. Há uma linha evolutiva, mas o sentido dessa evolução não é a adaptação darwiniana, e sim a invenção. O ato inventivo é fundamental para o ser técnico, pois este não existe na natureza, não existe sem aquele ato. (p. 12)

Estados alterados de consciência

Deleuze fazia muitas experiências com estados alterados de consciência. Jean-Paul Sartre tomou anfetaminas para escrever O ser e o nada. Há toda uma linhagem de filósofos que só pensavam o que pensavam por conta dessas experiências. É comum também que surja um interesse pelo selvagem, pelo primitivo, como no caso do Antonin Artaud, que foi tomar peyote com índios mexicanos. O interesse pela Arte Bruta (art brut), que agora voltou a crescer, também está ligado a isso. Esses agenciamentos aberrantes dizem alguma coisa sobre um plano da realidade que escapa à percepção habitual. (p. 12-3)

Desvios de função

Existem artistas que trabalham apenas com o desvio de função de máquinas: elas funcionam, mas de um jeito outro – fazem coisas absurdas. Jean Tinguely fez isso: pegou seu grande conhecimento de mecânica para fazer dele a não-produção. Ele produziu não-produção, e o interessante é o barato das maquinações: é como se ele pegasse todos esses agenciamentos e os enlouquecesse. Isso não é contrário ao que estamos estudando aqui: desvio de função é justamente a invenção, descontinuidade, reconfiguração do con-junto, um salto. (p. 13)

Inventor: incompatibilidade -> coerência e consistência interna

O inventor é aquele que olha para um incompatível, vê a articulação de forças, e imagina uma alternativa, outra configuração, que promova consistência e coerência interna. Mas o problema da invenção embaralha as causalidades, pois o objeto concretizado na invenção é a condição de sua própria concretização. Todas as condições para uma concretização do movimento imanente da técnica só estarão presentes quando surgir uma configuração que permita essa concretização; é uma conjunção. O problema da técnica não é técnico, é social (num sentido amplo); as condições objetivas de concretização técnica são extratécnicas. (p. 13)

Buckminster-Fuller

Seria interessante compararmos a metodologia do Simon-don, para pensar a evolução dos objetos técnicos, com a de Ri-chard Buckminster-Fuller (1981), no livro Critical path – livro este fundamental para pensar sobre tecnologia. Os dois estavam inte-ressados em ver essa evolução a partir da questão da informação, e Buckminster-Fuller também se interessou profundamente pela cibernética. Mas Simondon foi um pensador, um filósofo, enquanto Buckminster-Fuller foi um inventor que fez muitas invenções, algumas que só estão sendo concretizadas agora. Buckminster-Fuller sabia que cada ramo de tecnologia (linhagem tecnológica) tem um tempo de gestação, e que havia um hiato entre a invenção e o seu "nascimento social". Ele se interessou por monitorar esse hiato, e percebeu que, na década de 70, tudo dispara. Não deve ser por acaso que Buckminster-Fuller e Simondon são dessa mesma época, quando tudo dispara – quando a informação se torna mais uma dimensão da matéria, quando a informação dispara a tecnologia. O pensamento de Buckminster-Fuller é diferente, mas paralelo ao do Simondon. Acho que Simondon pensou de um jeito mais rigoroso, cartesiano, do que o Buckminster-Fuller. É legal ver como dois grandes pensadores da tecnologia pensaram esse movimento. (p. 14)

Buckminster-Fuller tem ainda um lado artista que é fundamental (Critical path era livro de cabeceira de John Cage). Buckminster-Fuller teve uma crise aos 20 anos de idade – tentou se matar, ficou dois anos isolado estudando Albert Einstein e Leonardo da Vinci –, para depois influenciar toda a ciência contemporânea, como no caso das "Bucky balls" em nanotecnologia. Ele percebeu muito cedo que teria que escolher entre fazer dinheiro ou fazer sentido. Ele escolheu fazer sentido, pois se você quiser se revoltar contra uma ordem social, primeiro precisa saber como funciona esta ordem. Ele logo percebeu que, para mudar as pessoas, é mais fácil mudar o ambiente no qual elas estão, do que a consciência delas. Você muda a cabeça das pessoas mudando o ambiente; a transformação do ambiente transforma o ser humano. Quando ele descobriu isso, ele deixou de lado a política e focou na tecnologia. (p. 14-5)

O maestro (mecanólogo, sociólogo/psicólogo das máquinas) como mediador

Aquele que pensa "que sociedade é essa hoje" é, em certa medida, aquilo que Simondon chamou de "maestro", e também de "mecanólogo", "sociólogo" e "psicólogo". O problema do maestro não é conhecer a linguagem dos instrumentos (apesar de isso ser geralmente esperado). A grande diferença entre o maestro e qualquer outro membro da orquestra é que, em lugar de tocar um instrumento, ele está nos entres, em meio aos que tocam, coordenando esse movimento pelo porvir, pela tendência: ele "puxa" a música; ele é uma pessoa que se deixa atravessar por todos os músicos; ele tem que se responsabilizar pelo diálogo; ele está captando o que cada um está fazendo; ele tem que estar, como o mecanólogo, ouvindo-vendo essa relação entre humanos e máquinas em todas as suas variantes humano-humano, humano-máquina e máquina-máquina. Isso pode parecer banal, mas o que não me parece de forma alguma banal é tirar o automatismo das nossas cabeças, isso que é condição para uma filosofia não autocrática das máquinas. Pois podemos entender isso aqui-agora, mas daqui a cinco minutos ter uma relação autocrática com o celular ou o automóvel – ou seja, uma relação utilitária, como o antigo usava o escravo – na qual depois de usada, a máquina deve sair de cena. (p. 15)

O processo de concretização (máquina primária > máquina concreta)

É preciso pensar a ontologia da técnica, o modo de ser do objeto técnico, que é uma mistura de humano e natureza, humano e não-humano. Para que possamos nos entender com os objetos técnicos – e precisamos nos entender com eles –, precisamos compreender que eles também têm uma evolução, e que ela é diferente da nossa. Primeiro existe uma analítica da máquina, quando ela é pensada. Depois ela se concretiza, com sua evolução. Nesse processo, preciso ouvir a máquina – tanto na medida em que ela concretiza a abstração, quanto na medida em que ela me diz coisas que não estavam previstas no esquema abstrato. Ela diz coisas que não estavam previstas no meu plano; os materiais e as leis da natureza colocam para mim obstáculos e dificuldades. O funcionamento da máquina é a cobinação entre aquele que a gente previu, e aquele que está acontecendo. (p. 16)

Primeiro a máquina é pensada; é primária; é "função + função + função..."; é uma organização das expectativas que eu tenho com relação a cada parte dessa máquina, pensada separadamente, como elemento. O problema aparece quando eu junto isso tudo em um todo coerente. Um mero acúmulo de funções não é uma sinergia de funções. A máquina sugere modificações do plano, para que este se concretize. É preciso escutá-la. O técnico dialoga com a máquina, e não com um esquema abstrato. O pensamento analítico inicial não escuta a máquina como indivíduo técnico, ele só é adequado ao nível do elemento. É essa dimensão adicional aos elementos justapostos, esse n + 1 (os elementos mais algo, que é a sinergia), que permite a compreensão da máquina, do indivíduo técnico. É uma só concretização, que no nível dos elementos não gera problemas, no nível dos indivíduos gera problemas, e no nível dos conjuntos permite uma possibilidade de resolução. (p. 16-7)

Consistência ~ relação com o meio

A consistência de um ser está ligada à positividade que ele estabelece com o seu meio. Não é adaptação, mas troca. Buckminster-Fuller mostrou muito bem que, se detonarmos o planeta, então vamos ser extintos; nossa individuação perderá sua consistência. É preciso pensar o meio como meio técnico. (p. 17)

O caso da mecatrônica (mecânica + eletrônica) e do cacau

Uma pesquisa japonesa dos anos 1990 mostrou que, quando há essa mutação-fusão, como na mecatrônica (mecânica + eletrônica), ocorre algo do tipo 1 + 1 = 3. Além dos potenciais anteriormente existentes da mecânica e da eletrônica, surgem potenciais antes inexistentes, próprios da mecatrônica. Com isso, a capacidade industrial de planejamento estratégico e identificação de concorrentes se complica, exigindo novas estratégias de espionagem industrial. Um bom exemplo disso é o caso da manteiga de cacau. Antes, o cacau era a matéria prima para este produto, de forma que a indústria sabia o universo com o qual tinha que se preocupar. No entanto, com a descoberta de diversos outros materiais (derivados de petróleo, por exemplo) que poderiam desempenhar a mesma função do cacau na produção do produto, esse universo se complicou. Se eu sou produtor de manteiga de cacau, antes eu conhecia o mercado, sabia quais os setores que me influenciavam, meus fornecedores, concorrentes etc., mas agora tenho novos problemas, pois a concorrência e a inovação vêm de lugares imprevistos. O tempo inteiro, tudo está em jogo; não é mais possível esperar o retorno econômico de uma nova tecnologia antes de lançar a próxima, e isso já no começo dos anos 1990. É o princípio do surf: surfar ou morrer. Hoje não é mais possível fazer como antes, e esperar o retorno financeiro de uma inovação para lançar a próxima. Agora, eu preciso sempre lançar o último modelo, e é a propriedade intelectual que vem tornando possível a acumulação econômica nesse novo contexto. Podemos dizer que existem duas velocidades, a econômica e a tecnológica, que ultimamente começaram a entrar em conflito: a propriedade intelectual vem forçando uma redução da velocidade tecnológica em benefício da econômica. (p. 17-8)

Exemplo das usinas nucleares (caso Fukushima)

As máquinas concretizam potências imantentes; elas se tornam cada vez mais aquilo para o qual elas tendem – que não é uma simples projeção daquilo que queremos que elas sejam, mas sim os potenciais que elas podem realizar e que nunca vão se esgotar. Elas evoluem conosco, mas nós não determinamos o futuro delas. Isso pode ser ilustrado com um exemplo contemporâneo. Usinas de energia nuclear são projetadas para resistir a terremotos de até 7 pontos na escala Richter. Ora, o terremoto que acaba de acontecer no Japão5 foi de 9 pontos. Termoreatores nucleares estão derretendo e a contaminação por radioatividade já ameça fugir do controle. Vemos que a natureza está respondendo, mas não do jeito esperado. Vai ser necessária uma revisão de toda a questão da segurança nuclear, pois todos só se protegiam até terremotos de 7 pontos. Na Califórnia, existem várias empresas de energia nuclear que ficam sobre a falha tectônica. Se eu fosse californiano eu ficaria preocupado. (p. 18-9)

Concretização: analítico > concreto

No processo de concretização, há uma passagem do modo analítico para o concreto, na qual o objeto vai ganhando coerência. A diferença entre o artesanato e a produção industrial é útil para a compreensão desse ponto. No artesanato, estamos juntando elementos para ver como realizar um objetivo. Já na produção industrial, tais elementos ganham uma integração na qual eles passam a existir, não como uma soma de elementos, mas como um agenciamento sinergético. Assim, enquanto no artesanato havia um agregado de operações isoladas que poderia ser desfeito sem comprometer essas mesmas operações, se tentarmos separar as operações que compõem a produção industrial não as encontraremos mais. Essa consistência que o ser técnico concreto ganhou é irreversível; ele se tornou um agregado coerente cujos elementos não existem mais independentemente. (p. 19)

Concretização e artificialização

Seria útil considerar o que Simondon diz sobre a oposição entre artificialização e concretização. Artificialização é a desconstrução de uma individuação para outros fins; é uma perversão. É o caso da flor na estufa – quando, em lugar de naturalizar (como no caso da concretização das máquinas), você artificializa o organismo. A ciência, por exemplo, descobriu que é mais fácil achar os princípios ativos de plantas já conhecidas por populações tradicionais do que começar do zero no laboratório. É uma perversão para ganhar dinheiro. Condenar a técnica pela artificialização não é condenar a técnica, mas sim a artificialização (p. 19)

O caso da engenharia genética

No caso da engenharia genética, por exemplo, é preciso assumir que existe aqui uma confusão sobre se a semente geneticamente modificada é ainda uma "semente como antes", ou se ela é uma coisa "totalmente nova", que antes não existia. É semente ou é propriedade? Na hora de usar é preciso pagar por aquilo que ela tem de diferente de todas as outras sementes, algo que é considerado propriedade particular. Mas na hora de vender é preciso convencer de que se trata de uma semente como qualquer outra, que a operação é a mesma de sempre. Ora, a sociedade precisa decidir se quer eliminar o que se entende por semente e aceitar a engenharia genética, ou não. É preciso decidir, e não apenas fingir que é semente como sempre. Por isso o caso da estufa, apresentado por Simondon, é central aqui: a individuação da planta foi interrompida e tornada dependente do humano. O problema desse processo de artificialização de um ser natural é que a semente geneticamente modificada ameaça a existência da semente natural, algo que não ocorre no processo de concretização dos objetos técnicos. A máquina não percebe: ela lê mas não vê, funciona de um modo diferente do humano. Aqui não há desconstrução do humano, mas sim construção da máquina. Isso é muito diferente da semente geneticamente modificada. (p. 19-20)

Natureza e cultura (diferentes modos de existência)

Há, podemos dizer, uma diferença clara entre natureza e cultura. Apesar de existir um substrato comum entre o artificial e o natural, isso não significa que são a mesma coisa. São diferentes modos de existência, como nos casos do ser físico, do ser biológico ou do ser psicossocial. Em sua obra sobre os diferentes modos de existência, Étienne Souriau (2009) considera ainda outros modos de existência, como o dos fantasmas. É possível pensar o ser físico, o ser vivo, o ser humano, a máquina, os fantasmas... Como Simondon, ele pensa então o "entre", para pensar o indivíduo. O humano nunca será supérfluo, mas ele muda de função, de papel. O humano não é da mesma natureza do técnico. A evolução vital é paralela à técnica, mas não há analogia. A confusão entre essas duas evoluções foi justamente o erro da cibernética. (p. 20)

Técnica e mercadoria

Simondon permite entender o que é exclusivo do ser vivo, o que é exclusivo do ser técnico, e o que é comum a ambos. O que ambos compartilham é a informação, e esse compartilhado pode ser orientado rumo à concretização, ou rumo à artificialização. O importante é ver a tecnicidade, e o papel da informação na concretização dessa tecnicidade; e isso do ponto de vista humano e não-humano. O problema não é a artificialização, mas sim as implicações não pensadas dessa artificialização. Se é o capital que está mandando no processo, então não se trata mais de concretização técnica. Se a melhoria genética tem uma finalidade exterior, então não se trata de uma questão de coerência interna. A finalidade precisa ser interna ao objeto técnico, e não externa. A crítica não deve ser dirigida à técnica, mas sim à relação entre as acelerações tecnológica e econômica capitalista, ao fato de que esta está comprometendo aquela. É o feitiço-fetiche da mercadoria. (p. 20-1)

Capital e tecnicidade (movimento software livre)

O capitalismo não será superado sem uma conscientização dos modos de existência dos objetos técnicos. Aí está, evidentemente, o interesse dos movimentos de software livre nas suas diversas variantes, mais ou menos radicais. O software livre busca o movimento da tecnicidade, em oposição à lógica do capital. As máquinas não podem ser tratadas como escravas, o que foi feito tanto pelo capitalismo quanto pelo comunismo. (p. 21)

Trabalho e invenção (Simondon, Marx e D&G)

Simondon tratou da problemática econômica quando diferenciou trabalho e invenção. Podemos dizer que existem dois movimentos imanentes: o do capital e o da técnica. Parece-me que Simondon trata apenas do movimento imanente da técnica, ao passo que Marx reificou o trabalho, pois não se interessou pela invenção. Se quisermos encontrar esses dois movimentos imanentes sendo bem trabalhados em conjunto, teremos que ler o "Tratado de nomadologia" de Deleuze e Guattari (1997). (p. 21)

Ser e devir (humano) (no capitalismo)

Na chave processual da individuação, o problema não é o que o humano é (seu "ser", sua "essência"), e sim o que ele setorna(seu "devir", seu "vir-a-ser"). Trata-se de um pensamento político, mas que exige que se substitua as armas do velho humanismo. Um exemplo das implicações políticas desta questão é a maneira como o programa neoliberal processa o homo economicus, fazendo da vida um recurso a ser investido. Até nas relações afetivas é preciso que haja retorno. Osvaldo J. López-Ruiz (2007) demonstrou isso numa pesquisa sobre o ethos dos executivos contemporâneos, quando, por exemplo, o desejo de aprender a tomar vinho vem já ligado à possibilidade de convidar o chefe para um jantar e ser promovido por demonstrar conhecimentos enológicos. Tudo é investimento e, portanto, envolve uma programação (cálculo). Então surge a questão: quando é que você individua efetivamente com seus próprios potenciais, e não com aqueles que são na verdade valorizados pelo sistema? Onde está a individuação e onde está a programação? Como saber se você está individuando, ou apenas fazendo o investimento que o sistema diz que você precisa fazer para não ser um loser? São todas implicações políticas. (p. 22)

Possibilidades de uma individuação humano-máquina no capitalismo. Psicanálise -> neuro/cyber

Em que medida o grau de controle no capitalismo contem-porâneo abre margens de individuação humano-máquina? Em que medida há o controle e em que medida há individuação? Em que medida o controle transforma a própria maneira como concebemos a psiquê humana? A psicanálise (as "psis") está em decadência pois as "neuros" (ou "cybers") dizem que podem resolver todos os problemas neuroquimicamente. A psicanálise enquadrava a economia libidinal do homem ocidental em determinados parâmetros, mas o que fundamenta o pensamento freudiano já não fundamenta mais a compreensão contemporânea da subjetividade. Novas práticas reprodutivas ligadas a novas formas de sexualidade e de agrupamento familiar tornaram obsoleta a psicanálise. Em meados do século XX a reprodução humana ainda não lidava com essas questões, e as transformações só aceleraram. No entanto, se os processos de individuação se transformaram drasticamente, o pensamento sobre a individuação parece não ter acompanhado. (p. 23)

Hamlet foi o primeiro a dizer, ainda no século XVI: "o tempo está fora do prumo". Nós continuamos nesta questão: ninguém tem tempo; há um abismo, uma tensão, entre o tempo social e o tempo humano, e lidar bem com isso é raro. Vinte anos atrás, Heiner Müller escreveu Hamlet-Máquina, misturando a questão de Hamlet com a questão das máquinas. Segundo Müller, a poesia interessa pois vai mais depressa que a teoria, e isso também me interessa. Se isso é obscuro, é preciso notar que Müller estava escrevendo no escuro. E se Shakespeare antecipou uma questão central da modernidade com Hamlet, então não estaria Müller antecipando uma nova questão? O que vai acontecer? Isso me interessa. (p. 23)


  1. Santos, Laymert Garcia dos. 2022. “Por Uma Sociologia não autocrática Das máquinas”. Ideias 13 (00). Campinas, SP:e022026. https://doi.org/10.20396/ideias.v13i00.8671667.