PsiApps: autonomia individual e mediação técnica
Fichamento do artigo "'Tudo por conta própria'"1 de Fernanda Bruno et al.
Resumo
Este artigo discute o resultado da análise de 10 aplicativos móveis de autocuidado psicológico utilizados no Brasil, que denominamos PsiApps. A análise se desdobra em duas camadas: uma ‘visível’, que envolve os discursos dos próprios aplicativos para descrever os problemas que visam solucionar, suas promessas e seus métodos; outra ‘invisível’, que inclui formas automatizadas de coleta e compartilhamento de dados dos usuários pelos aplicativos. Veremos como a ênfase na individualidade e na autonomia manifesta na primeira camada torna opaca uma série de mediadores presentes na segunda camada, em grande parte invisíveis para o usuário. O contraste entre a centralidade da agência individual promovida pelos discursos dos PsiApps e o caráter relacional da infraestrutura e do ecossistema de dados que os integram evidenciam as contradições da autonomia ofertada por esses aplicativos
Economia psíquica dos algoritmos e PsiApps
Esse ecossistema digital entrelaça, de modo singular, corporações de tecnologia, ciência e sociedade em uma nova lógica que investe, cada vez mais, em processos algorítmicos de captura, análise e uso de informações psíquicas e emocionais extraídas de grandes volumes de dados. Tal investimento tecnocientífico, econômico e social compõe os processos de uma Economia Psíquica dos Algoritmos (BRUNO, 2018; BRU-NO; BENTES; FALTAY, 2019), da qual os aplicativos fazem parte. Interessados em compreender como as informações psicológicas e emocionais vêm sendo coletadas e usadas em aplicativos móveis, nossa análise tem como foco o que designamos de ‘aplicativos de autocuidado psicológico’ou, numa versão abreviada, PsiApps. Esta designação provém da análise do modo como os próprios apps enunciam o serviço que oferecem, bem como os estados de bem-estar psicológico que dizem promover. (p. 35)
PsiApps
Os PsiApps abrangem um escopo amplo e heterogêneo de serviços e funcionalidades relacionadas à saúde mental: vão desde técnicas de meditação, passando por controle do sono ou de outras funções emocionais e fisiológicas, até a realização de testes psicológicos e terapia guiada. Por um lado, esses apps têm o potencial de oferecer aos usuários informações e serviços, possibilitando acesso a dados em tempo real, orientações sobre condições clínicas e incentivo a hábitos benéficos à saúde psíquica, emocional e física. Por outro, eles ampliam potencialmente a coleta de informações psicológicas e emocionais, bem como as predições que se pretendem extrair dessas coletas que são valiosas não apenas para fins comerciais, mas também para a pesquisa médica, clínica e científica. (p. 35)
Camada visível: autonomia individual (~neoliberalismo)
Na primeira dimensão, identificamos que boa parte dos aplicativos dirige-se a um ‘sujeito ansioso’, ao qual oferecem meios para cuidar de si mesmo, especialmente através de um automonitoramento que promete autoconhecimento. O discurso identificado nessa camada reverbera uma série de processos relacionados à racionalidade e à subjetividade neoliberais, que envolvem “a pressuposição de um self autônomo, livre e com poder de escolha, como um valor, um ideal e uma meta” (ROSE, 2011, p. 211). Entendemos, assim, que os PsiApps reproduzem e reforçam essa racionalidade, instigando o usuário ansioso a resolver “tudo por conta própria” (CÍNGULO, 2019) e a tratar o bem-estar emocional como uma questão de “simples escolha” (CÍNGULO, 2019). Como veremos, essa oferta de autonomia e autocuidado individualizados e individualizantes nos apps analisados – que inclui desde ideais de empreendedorismo individual a modelos clínicos e psicológicos de autocuidado, aproximando-se de um treinamento de si – está repleta de mediadores invisíveis (LATOUR, 2012). (p. 36)
Camada invisível: captura (por meio de mediadores - TOCs e trackers)
Na segunda camada, focalizaremos nesses mediadores invisíveis, evidenciando que o usuário não está apenas consigo mesmo nessa busca pelos estados emocionais prometidos; e tampouco está diante de uma ferramenta neutra. O usuário só está ‘por conta própria’ num sentido muito limitado do termo que, como veremos, não se confunde com a suposta autonomia e o controle sobre si alegados e propagados pelos PsiApps. Incorporados à própria materialidade e infraestrutura desses aplicativos, atuam uma série de mediadores pouco ou nada visíveis para o usuário: recursos das interfaces dos apps, mecanismos de coleta de dados, processos algorítmicos de análise e predição, entre outros. Usando estratégias metodológicas para a abertura dessas ‘caixas-pretas’ (LATOUR, 2012) que são os apps, exploramos dois níveis dessa segunda camada: os termos de uso e políticas de privacidade, de um lado; e, de outro, os rastreadores (trackers) presentes nos aplicativos, buscando pistas sobre os atores e mediadores presentes no ecossistema de dados dos PsiApps e seus modelos de negócios. (p. 36)
Contradição entre as duas camadas dos PsiApps
De um lado, tais apps reverberam processos de subjetivação neoliberais, que, a partir de modelos psicológicos e terapêuticos específicos, buscam responsabilizar os indivíduos na jornada do aprimoramento ininterrupto de si. De outro, embora reproduzam um discurso de suposta neutralidade e autonomia, os PsiApps contam para seu funcionamento com mediadores invisíveis, integrados às dinâmicas da economia digital, cada vez mais interessada em informações psicológicas e emocionais (BRUNO; BENTES; FALTAY, 2019). (p. 35)
Objetivo do artigo: evidenciar e mapear
Em uma perspectiva teórico-metodológica que se aproxima dos App Studies (GERLITZ et al., 2019; DIETER et al., 2019), pretendemos evidenciar e mapear a condição inerentemente relacional, híbrida e heterogênea desses dispositivos. Num contexto de crise e de extrema vulnerabilidade, é fundamental desvelar as relações inscritas em emergentes práticas de cuidado de si, discutindo e avaliando com cautela as ‘soluções’ ofertadas, uma vez que o acesso aos mediadores tradicionais ficou menos acessível durante a atual pandemia. (p. 36)
Aplicativo (App) -- App e Software Studies
O que tende a permanecer pouco evidente é o fato de que aplicativos são pacotes de software que continuamente alimentam múltiplas conexões em uma infraestrutura multinível e multiescala, composta por uma miríade de atores heterogêneos – técnicos, econômicos, culturais, científicos, epistemológicos etc. Como os emergentes campos dos App Studies (GERLITZ et al., 2019; DIETER et al., 2019) e dos Software Studies (BRATTON, 2015) vêm demonstrando, aplicativos jamais são objetos autônomos e isolados, mas entidades relacionais, emaranhadas em infraestruturas de dados, modelos econômicos, conjuntos sociotécnicos, que operam em diferentes níveis. (p. 37)
De um ponto de vista sociotécnico, como viemos destacando, um aplicativo é uma entidade relacional e agenciada de camadas de software (DIETER et al., 2019; BRATTON, 2015) e montada em tempo de execução (GERLITZ et al., 2019), uma vez que tanto o aplicativo como seu usuário estão sempre conectados a uma miríade de objetos, serviços, dispositivos e infraestruturas, sem que esse usuário saiba exatamente quando, como, onde e com quem tais conexões são estabelecidas. (p. 45)
Metodologia: abrir caixas-preta, 10 aplicativos na Google Play Store
(p. 37-8)
Tracker
Um tracker é um software cuja tarefa é coletar informações a partir do uso de um aplicativo. Ele pode informar ao desenvolvedor como o usuário utiliza o aplicativo e o dispositivo móvel, e geralmente é distribuído pelas empresas no formato SDK (Software Development Kit). Para detectar a presença desses rastreadores, utilizamos o serviço εxodus, que se apresenta como uma plataforma de auditoria de privacidade para aplicativos Android e que dá visibilidade à presença de trackers através do rastreamento de seus arquivos ou pacotes de instalação. A identificação e análise dos rastreadores presentes nos PsiApps nos permite, assim, rastrear o fluxo de dados não declarados pelos desenvolvedores em seus termos de uso e políticas de privacidade, assim como os mediadores ocultos e os indícios dos seus modelos de negócios. (p. 40)
Ansiedade como principal "problema" (seguido de estresse, depressão, autoestima, foco e sono)
A respeito dos problemas, a ansiedade está no centro desses discursos, aparecendo em nove entre os dez aplicativos analisados, sendo que seis deles possuem a palavra ‘ansiedade’ em seus títulos ou subtítulos. A ênfase na ansiedade reverbera dados apresentados em relatório da OMS (WHO, 2020), que mostra que o Brasil lidera casos de ansiedade no mundo. Entre os problemas mais frequentes apresentados pelos PsiApps estão também estresse, depressão, questões relacionadas à autoestima, à atenção e ao foco e ao sono (Figura 2). (p. 40)
Alguns dos apps oferecem, inclusive, suas próprias definições de ansiedade. O Querida Ansiedade afirma que a ansiedade “é uma preocupação exagerada com aquilo que está por vir” (QUERIDA ANSIEDADE, 2019). Uma segunda definição é apresentada pelo Monitor de Ansiedade e Humor: “Ansiedade, ânsia ou nervosismo é uma característica biológica do ser humano e animais, que antecede momentos de perigo real ou imaginário, marcada por sensações corporais desagradáveis” (MONITOR DE ANSIEDADE E HUMOR, 2019). Em comum, os dois pontuam que a ansiedade é uma emoção normal e benéfica, sendo prejudicial, quando se torna muito recorrente e intensa. Assim, ambos oferecem meios de conviver de modo mais saudável com a ansiedade. (p. 41)
Para os PsiApps, em geral, a ansiedade não deve ser eliminada, mas sim administrada com a ajuda de suas ferramentas. Como enfatiza o Querida Ansiedade (cujo próprio título traz essa dimensão conciliatória), a ansiedade é “um alerta para a busca de uma vida mais autêntica” (QUERIDA ANSIEDADE, 2019). Nesse sentido, a ansiedade seria o fator pelo qual os sujeitos seriam impulsionados a cuidar, gerir e controlar a si mesmos. (p. 41)
Ferramentas de autogestão e autocuidado
Já em relação às ferramentas e aos métodos ofertados para auxiliar os usuários – a segunda categoria de nossa análise da camada ‘visível’ –, boa parte dos aplicativos atua numa zona nebulosa entre suporte técnico, apoio clínico e autocuidado. Essa indefinição é perceptível na descrição de alguns aplicativos: de um lado, ancoram seus serviços em conhecimentos e técnicas científicas e clinicamente estabelecidas; de outro, ressaltam que não pretendem oferecer serviço psicoterapêutico propriamente dito e que visam sobretudo oferecer meios para que o próprio usuário cuide, monitore e conheça melhor a si mesmo. Apenas dois dos dez aplicativos (Cíngulo e Sanvello) oferecem ferramentas de ‘terapia guiada e/ou técnicas terapêuticas’ enunciadas como clinicamente validadas. (p. 41)
Entre as ferramentas mais frequentes (Figura 3), além de exercícios de relaxamento, meditação guiada e respiração, estão recursos de ‘automonitoramento’. Encontradas em sete dos dez aplicativos, tais ferramentas correspondem a técnicas para coleta explícita e direta de informações sobre humor e estados emocionais, indicando a relevância desse tipo de dado para os PsiApps. Outras funcionalidades complementam o automonitoramento, como ferramentas de diário pessoal e espaço para escrita terapêutica, ou ainda relatórios estatísticos e gráficos, voltados para visualização das análises dos dados fornecidos pelos usuários. (p. 41-2)
Em geral, as ferramentas de automonitoramento estão associadas à possibilidade de aprimorar o autoconhecimento e/ou melhorar a si mesmo. Essa possibilidade de autoconhecimento, de um ‘aperfeiçoamento’ de si, digamos, é encontrada em seis dos dez apps como a principal promessa – terceira categoria de análise da camada ‘visível’. Há uma associação clara entre as práticas de automonitoramento – rastreamento e registro de aspectos psicológicos e comportamentais, tais como humor, emoções, ansiedade, ânimo, atividades e outros – e o autoconhecimento, anunciado como chave para cuidar e melhorar a si mesmo. Como afirma o app Querida Ansiedade, o autoconhecimento serve para transformar “a vilã” ansiedade “em amiga” (QUERIDA ANSIEDADE, 2019). A partir do automonitoramento sistematizado e de o (p. 42-3)
Treinamento de si ~ neoliberalismo
A partir do automonitoramento sistematizado e de outros exercícios para reduzir a ansiedade, o autocuidado promovido pelos PsiApps se aproxima mais de um treinamento do que de uma hermenêutica de si, característica do modo clínico terapêutico moderno (FOUCAULT, 2010). Esse treinamento de si é expresso, por exemplo, na descrição do app Lojong, que se entitula “uma academia para mente” na qual “você aprende a treinar sua mente através de práticas de meditação” (LOJONG APP, 2019) e outros exercícios de relaxamento. Ou ainda, no discurso do app Fabulous: “iremos agir como seus treinadores da vida, construindo sua motivação para que você possa focar em desenvolver hábitos que reduzam problemas de saúde mental, como ansiedade, e melhorar sua produtividade diária” (FABULOUS, 2019). (p. 43)
O que a análise de tais discursos evidencia, portanto, é que o autocuidado, concebido como um ‘treinamento de si’, visa a um aperfeiçoamento, a partir de uma autogestão otimizada, monitorada e calculada que os apps proporcionariam. A mensagem aos usuários é a de que ‘se conhecendo’, eles podem se aperfeiçoar, o que reproduz e reforça aspectos de uma racionalidade neoliberal (ROSE, 2011; FOUCAULT, 2010; EHRENBERG, 2010; BROWN, 2006), centrada em soluções individuais, o que estimula os indivíduos a buscarem continuamente a otimização de seus recursos psicológicos. (p. 43)
Coaching e mindifulness como zonas de intersecção entre os discurso psi e neoliberal
A influência da Psicologia Positiva e de suas técnicas de Coaching é facilmente percebida nos enunciados dos apps. Entre os aplicativos que mencionam modelos terapêuticos, o Mindfulness, que envolve técnicas e exercícios de direcionamento da atenção, é o mais recorrente. Traduzida para o português como ‘atenção plena’ ou ‘consciência plena’, o Mindfulness é uma técnica de meditação secular cujas práticas consistem em dirigir a atenção tanto para elementos externos, como sons e imagens, quanto para si próprio, como a respiração e as sensações corporais, com o objetivo de manter “afastados os demais pensamentos e os julgamentos” (MORAES, 2019, p. 234). (p. 43)
V: Segundo o Instituto Brasileiro de Coaching, o Coaching “é um processo, uma metodologia, um conjunto de competências e habilidades que podem ser aprendidas e desenvolvidas por absolutamente qualquer pessoa pra alcançar um objetivo na vida pessoal ou profissional, até 20 vezes mais rápido” (IBC, 2020). Autores como Dardot e Laval vêm enfatizando a relação entre técnicas como o Coaching e a programação neurolinguística e a produção do sujeito neoliberal, uma vez que elas “têm como objetivo fortalecer o eu, adaptá-lo melhor à realidade, torná-lo mais operacional em situações difíceis” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 333). (p. 43)
McDonaldização do mindfulness e mercado do sujeito ansioso
Para Ronald Purser (2019), aplicativos de atenção plena integram a ‘McDonaldização do Mindfulness’, uma vez que produzem uma técnica eficiente, escalável e quantificável e uma mercadoria globalizada e comercializável. Deste modo, junto com outros apps de controle do tempo e da atenção, os PsiApps compõem um mercado do ‘sujeito ansioso’, no qual pessoas buscam soluções rápidas e individualizadas para dar conta de sua ansiedade e de seus efeitos negativos no trabalho, nos relacionamentos e na saúde mental. (p. 43)
Aparente autonomia do neosujeito, self empreendedor, sujeito empresarial
Nesse processo, a figura do “sujeito empresarial” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 333) ou “self empreendedor” (ROSE, 2011, p. 215) emerge como aquele que se automonitora e quantifica ininterruptamente variações de humor, sintomas psicológicos e estados emocionais de modo a calcular, administrar e gerir seus problemas subjetivos. E é nessa retórica que se apoiam as funcionalidades desses aplicativos, uma vez que eles ofereceriam, ao alcance do usuário, as ferramentas necessárias para ele “superar os problemas emocionais que mais atrapalham a sua vida” (CÍNGULO, 2019) (p. 44)
Embora o discurso dos apps enfatize que o sujeito é responsável por seu sucesso (ou seu fracasso) e que ele é autônomo na conquista do seu bem-estar psíquico, numa espécie de “empreendedorismo psíquico” (FISHER, 2016, p. 137) tais promessas só podem ser alcançadas se os usuários estão assistidos pelas ferramentas dos próprios aplicativos, que envolvem uma série de processos opacos aos olhos dos usuários, ferindo, assim, sua suposta autonomia. (p. 44)
Autocuidado ~ cuidado de si
É curioso notar como essa versão tecnologicamente assistida do autocuidado opera uma série de inflexões neoliberais numa noção cujos sentidos históricos já foram tão distintos. Mais afastado de nós, o cuidado de si se constitui na Antiguidade como um conjunto de técnicas pelas quais a vida de cada um é tomada como objeto de conhecimento ou de arte (FOUCAULT, 2002). Mais recentemente, a noção de autocuidado tem uma trajetória médica e política que encontra uma de suas expressões mais potentes no feminismo negro entre os anos 1970 e 1980. O cuidado consigo ganha, nesse contexto, a força política de sobrevivência frente a instituições médicas racistas e sexistas, implicando ações tanto individuais quanto coletivas que envolviam, inclusive, a abertura de clínicas comunitárias (NELSON, 2011). (p. 44)
Visão tecnoliberal do autocuidado
Toda essa dimensão política, crítica e coletiva é esvaziada na versão tecnoliberal do autocuidado encarnada pelos PsiApps. Na esteira das ferramentas de autoajuda, a retórica neoliberal do autocuidado adiciona uma atenção maior aos limites e às fragilidades individuais, buscando ao mesmo tempo aceitá-los e superá-los por meio de investimentos em si mesmo. Os PsiApps materializam, assim, o investimento e a responsabilidade individuais como o caminho terapêutico para lidar com problemas psíquicos e emocionais sem considerar fatores coletivos, socioculturais e contextuais implicados no sofrimento individual. (p. 44-5)
Privatização do stress em Mark Fischer
Tal perspectiva está em consonância com o que Mark Fisher (2016) chama de “privatização do stress” (p. 125) ao abordar a saúde mental nas sociedades capitalistas atuais. A “privatização do stress” (p. 125) para o autor, foi parte fundamental do projeto de destruição do conceito de público e do qual depende, fundamentalmente, o conforto psíquico. Em nossa análise, chama atenção como os aplicativos raramente vinculam os estados de ansiedade a dimensões que ultrapassam o indivíduo. Para eles: “A melhor forma de aprender a lidar com a ansiedade é conhecer a si mesmo” (QUERIDA ANSIEDADE, 2019). (p. 45)
Terms of Consent (ToCs) -- Termos de uso e Políticas de privacidade
Assim, para rastrear os fluxos de captura e compartilhamento de dados e os atores que compõem essa infraestrutura sociotécnica, examinamos num primeiro momento os termos de uso e políticas de privacida-de, raramente lidos com atenção pelos usuários, mas centrais à delimitação da responsabilidade jurídica do aplicativo. Notamos que apesar de todos fazerem menção ao compartilhamento de dados com terceiros e de quase a totalidade admitir a coleta de informações pessoais e/ou de atividades do usuário (oito e nove apps, respectivamente), apenas quatro dos dez PsiApps são específicos sobre com quem compartilham os dados e apenas dois apps fazem referência ao tipo de dados que podem ser compartilhados. Isso é especialmente crítico pelo caráter sensível dos dados aos quais esses aplicativos têm acesso, uma vez que disponibilizam ferramentas de registro, análise e monitoramento de informações sobre emoções, humores e estados psi-cológicos dos usuários. A coleta e o compartilhamento desse tipo de dados, no entanto, praticamente não é especificada. Somente a política de privacidade do Sanvello cita explicitamente a coleta de informações sobre “humor, objetivos e dados pessoais de saúde” (SANVELLO, 2020, tradução nossa) (p. 45-6)
Finalidade (marketing)
Quanto à finalidade da coleta de dados, oito aplicativos alegam que os dados são utilizados para melhorar e personalizar a experiência do usuário e/ou aperfeiçoar os produtos e serviços ofertados. Sete aplicativos citam uso de dados para ferramentas de marketing comportamental ou personalização de anúncios. Alguns especificam finalidades analíticasvii, como: interpretações através da análise das ações e preferências do usuário (Meditopia), medir o desempenho de iniciativas de mercado (Cíngulo) ou gerar relatórios com estatísticas sobre o uso dos serviços (Sanvello). Via de regra, deixam brechas para usos não explicitados nas políticas de privacidade e nos termos de uso. Com relação à possibilidade de uso dos dados para fins de pesquisa acadêmica ou científica, três aplicativos a mencionam: Cíngulo, Meditopia e Fabulous. A Figura 4 apresenta uma síntese da análise sobre coleta, compartilhamento e uso de dados declarados pelos desenvolvedores. (p. 46)
Captura de informações pessoais e gerais
Informações pessoais: nome completo, e-mail, telefone, endereço, gênero, fotos subidas ao app, data de nascimento, documento de identificação, dados de acesso em redes sociais. O Sanvello menciona, além desses, que coleta dados referentes a planos de saúde e outros dados pessoais de saúde. (p. 46)
Informações gerais ou de atividade: endereço IP, dispositivo, tipo e versão de browser, páginas visitadas dentro do app, quando e por quanto tempo, quais as funcionalidades mais populares, entre outras, obtidas de modo automatizado, a partir de rastros de interação e que não identificam o usuário pessoalmente. (p. 46)
Trackers: anúncio e perfilamento (pela Facebook e Google)
Como descrito no tópico 2, além da análise dos termos de uso e políticas de privacidade, examinamos a presença de trackers nos arquivos de instalação dos aplicativos. No âmbito dos AppStudies, investigar os trackers – literalmente rastrear os rastreadores – é um método exploratório que expõe atores e conexões que costumam permanecer opacos na rede que constitui a economia de dados em que os aplicativos se capitalizam. Além disso, tal rastreamento permite detectar os tipos de trackers mais recorrentes nos PsiApps e a quem pertencem, dando indícios mais tangíveis acerca dos seus modelos de negócios. (p. 46-7)
Os trackers podem ser agrupados em diferentes categorias, a partir do tipo de informação que coletam. Neste artigo, utilizamos as categorias sugeridas pela própria ferramenta εxodus (2020): Relatório de erros, Analíticos, Criadores de perfil, Identificação, Anúncios, Localização. (tradução nossa). Entre essas categorias, dois grupos se destacaram: os ‘trackers de anúncios’ e os ‘trackers analíticos e de perfilização’, correspondentes a 33,3% e 44%, respectivamente, dos 75 trackers identificados. Enquanto os primeiros são utilizados para veicular automaticamente anúncios segmentados por públicos-alvo, gerando receita com sua aplicação; o segundo grupo se destina a capturar automaticamente uma série de eventos e dados do usuário, visando a construção de perfis, extração de métricas, segmentação de audiência, análise de comportamento dos usuários, relatórios de desempenho do aplicativo, correlação de eventos etc. (GOOGLE FIREBASE, 2020). (p. 47)
Quem são os terceiros que os termos de uso e políticas de privacidade tratam de modo tão vago? O levantamento realizado via εxodus mostrou a presença massiva do Facebook e do Google nesse circuito de captura, compartilhamento e análise de dados, o que nos fornece mais um dado importante sobre os atores e as relações que compõem essa infraestrutura que viemos descrevendo. Na inspeção de nove aplicativosviii, os trackers dessas empresas correspondem, juntos, a 66,6% do total da utilização de trackers. No infográfico a seguir (Figura 5) é possível visualizar o mapeamento realizado, detalhando os trackers e as permissões de cada aplicativo, bem como a recorrência de cada tracker. (p. 47)
Processo de captura: cíclico, recursivo e performativo
Um último aspecto a destacar sobre essa infraestrutura multinível e multiescala é o caráter altamente cíclico, recursivo e performativo de seu funcionamento: os dados capturados, analisados, perfilizados e segmentados são continuamente utilizados para testar, modificar e atualizar os aplicativos, gerando novos dados para análise num ‘circuito de retroalimentação’ contínuo, para utilizar um termo caro à cibernética (WIENER, 2017; HUI, 2019). Essa performatividade da função recursiva (LURY; DAY, 2019) no ecossistema dos aplicativos é um traço relacionado tanto ao próprio modo de existência dos objetos digitais modulados por algoritmos (HUY, 2016) quanto ao modelo de plataformização (HELMOND, 2015) – que está na base das demandas por contínuas atualizações e inovações do mercado da tecnologia (NIEBORG; POELL, 2018). No infográfico a seguir (Figura 6), ilustramos de modo sintético os fluxos de captura, compartilhamento e análise de dados por meio dos trackers, as múltiplas camadas, os atores e as conexões que compõem a infraestrutura que viemos descrevendo, bem como o caráter cíclico desse processo. (p. 48)
Mediadores
Como se pode ver, o autocuidado, que supostamente colocaria o indivíduo no centro do controle, conta na verdade com uma série de mediadores, humanos e não humanos, que são em grande parte invisíveis para o usuário. Ainda que o app seja visto pelo usuário como um mediador em sua busca por autoconhecimento e autocuidado, os muitos mediadores encapsulados no app escapam ao seu conhecimento e controle. (p. 49)
É sobretudo a opacidade dessa cadeia de mediadores que faz com que os PsiApps pareçam tecnicamente neutros para os usuários, atuando como “mediações que produzem experiência de não mediação” (CESARINO, 2019, p. 13). O aplicativo e sua suposta neutralidade técnica anuncia-se como um dispositivo perfeito para que cada um monitore, conheça e cuide de si mesmo. Afinal, trata-se de uma máquina que se alimenta de ‘nós mesmos’ (hábitos, condutas e informações que fornecemos) e que nos devolve uma imagem, um grafo, uma visualização de nosso humor, nossa rotina, nosso nível de ansiedade, nossas noites de sono ou de insônia. (p. 50)
Heterogeneidade e assimetria da rede e do processo
Ao mesmo tempo, vimos que a infraestrutura por onde trafegam os dados gerados pelo uso do app compõe uma rede heterogênea de relações dinâmicas entre atores, processos, protocolos, finalidades e apropriações, que, mais uma vez, são opacas para os usuários. Apesar de ser parte fundamental dessa infraestrutura composta por atores heterogêneos, o usuário, à diferença dos outros atores que o acompanham e monitoram, desfruta de modo muito limitado da dimensão relacional agenciada nessa rede, uma vez que não participa dela de forma minimamente simétrica. Já os atores que têm acesso privilegiado à infraestrutura e ao ecossistema de dados materializados na camada ‘invisível’ conseguem, de fato, tirar grande proveito dessa relação. (p. 49)
Relacionalidade dos dados capturados (perda de autonomia)
A dimensão relacional é, assim, quase que inteiramente expropriada por tais atores, que se alimentam dos dados relacionais e produzem perfis, valor, pesquisas científicas, testes e atualizações do produto etc. –que constituem-se na verdadeira condição para a possibilidade das ofertas de autonomia da camada ‘visível’. O sujeito tem sua participação extremamente limitada nesse processo, uma vez que em grande medida nem se percebe em tal relação, tendo sua agência e margem de negociação bastante reduzidas. É justamente essa limitação e assimetria que o impede de conhecer não só a rede da qual faz parte, mas as implicações de sua falta de autonomia em relação ao ecossistema automatizado. (p. 49)
Como alguns autores vêm destacando, o saber associado à atual economia de dados visa menos um conhecimento individualizado e aprofundado da personalidade de indivíduos específicos do que um conhecimento de correlações que revela padrões supraindividuais ou interindividuais que permitam, entre outras finalidades, gerar predições em larga escala (BRUNO; BENTES; FALTAY, 2019; ROUVROY; BERNS, 2015). Ou seja, apesar de depender da contínua produção, captura e compartilhamento de dados pessoais, a dimensão individual é também no ecossistema de dados, em certa medida, ilusória ou ao menos parcial, ainda que essencial, uma vez que é a dimensão relacional aquela de fato visada por esse modelo de conhecimento e poder. (p. 49)
Não-neutralidade e economia de dados
No entanto, sabe-se que “a Ferramenta Neutra sob controle completamente humano” é um mito (LATOUR, 1994, p. 32, tradução nossa). Como vimos, também não são nada neutros os problemas visados pelos apps, assim como as ferramentas que disponibilizam e as soluções que prometem. Embora frequentemente busquem legitimar seus métodos com ‘bases científicas’, os PsiApps são fruto de uma série de perspectivas sobre o psiquismo, o comportamento e as emoções, bem como sobre suas disfunções e ‘aprimoramentos’. Da mesma maneira, os tipos de dados, os hábitos, as emoções e estados psíquicos monitorados e coletados são frutos de escolhas baseadas em abordagens específicas e voltadas para finalidades particulares, as quais não são claras para o usuário, mas não são neutras. Ou seja, os PsiApps estão inseridos numa rede bastante complexa de influências e matrizes sociotécnicas, científicas, econômicas etc. Confrontar os discursos e modelos terapêuticos que colocam o indivíduo no controle do seu autocuidado com a materialidade e heterogeneidade dos atores e conexões agenciados na camada invisível evidenciou não apenas como os aplicativos móveis são parte da infraestrutura de uma poderosa economia de dados que se torna central para o capitalismo contemporâneo, mas também permitiu identificar processos ligados a contextos sociais, políticos e culturais mais amplos. Não por acaso, a defesa do fim dos mediadores tradicionais atravessa o funcionamento neoliberal da sociedade (CESARINO, 2019). Se o indivíduo deve ser o único responsável por sua autorrealização, quanto menos mediadores existirem entre ele e a conquista de suas metas, melhor. (p. 50)
Escolhas técnicas e epistemológicas subjacentes aos PsiApps
Além disso, o predomínio de técnicas de automonitoramento, que traduzem em dados humores e estados psíquicos são mais um indício do modo de funcionamento da mediação técnica desses dispositivos: eles sugerem como certos modelos terapêuticos podem ser mais adequados não somente à proposta de tratamento rápido, autônomo e flexível, mas às próprias operações técnicas dos aplicativos, sobretudo as algorítmicas. Noutros termos, o privilégio dado a certas ferramentas pelos PsiApps não é apenas indicativo dos modelos subjetivos e epistemológicos que estão em sua base, mas de quais modelos terapêuticos geram dados legíveis e operacionalizáveis algoritmicamente pela mediação técnica. (p. 50-1)
Autonomia individual -> economia de dados baseado na captura
Portanto, nessa jornada de autoconhecimento e autocuidado marcadamente neoliberal, o usuário está longe de alcançar efetivamente o modelo de autonomia tão propagado pelos PsiApps. Vimos que os dados gerados por ele são analisados e utilizados por uma série de outros humanos e máquinas, e geralmente compartilhados com terceiros, alimentando um modelo de negócios e de conhecimento dominado pelas grandes corporações de tecnologia. Um ecossistema que visa cada vez mais nossos dados psíquicos e emocionais, mas sobre os quais pouco ou nada sabemos. O promulgado autocuidado é, assim, acompanhado de uma cadeia complexa, heterogênea, recursiva e dinâmica de atores humanos e não humanos, constituída por protocolos tecnológicos, plataformas, instituições, corporações, dispositivos móveis, interfaces, bancos de dados, algoritmos, trackers, cientistas de dados, desenvolvedores, bem como modelos psicológicos, terapêuticos e de negócios. Problematizar tais questões não significa tomar o usuário por ingênuo. Trata-se, contudo, de enfatizar as implicações da assimetria materializada nessa rede sociotécnica entre o usuário e os atores que possuem acesso privilegiado ao ecossistema de dados. (p. 51)
-
Bruno, Fernanda Glória, Paula Cardoso Pereira, Anna Carolina Franco Bentes, Paulo Faltay, Mariana Antoun, Debora Dantas Pio da Costa, Helena Strecker, e Natássia Salgueiro Rocha. 2021. “‘Tudo por conta própria’: autonomia individual e mediação técnica em aplicativos de autocuidado psicológico”. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde 15(1). doi: 10.29397/reciis.v15i1.2205.
↩