Maquinações
Experimentações teóricas, fichamentos e outros comentários descartáveis

Para distinguir amigos e inimigos no Antropoceno

Cena do filme Gravidade de Alfonso Cuarón
Rafael Gonçalves
20/06/2021
Bruno LatourAntropocenonegacionismoGaia

Fichamento do texto Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno1 de Bruno Latour.

Quando Ryan, a única sobrevivente da aventura no espaço, chega nadando à margem do lago no qual sua nave finalmente aterrissou, e agarra com força um punhado de terra, ela sofre literalmente uma metamorfose. De humana ela se torna terrana [Earthbound ], enquanto o herói americano antiquado – seu colega de equipe, interpretado de maneira cômica por George Clooney – desa- parece para sempre no espaço sideral, juntando-se aos destroços das estações espaciais da Europa e da China. (p. 12)

O antropoceno como conceito passível de enfrentar os mitos modernos

Apesar de suas armadilhas, o conceito de Antropoceno oferece um modo poderoso, se usado de maneira sensata, de evitar o perigo da naturalização à medida que permite reconfigurar o antigo domínio do social – ou “humano” – em domínio dos Terráqueos ou dos Terranos. (p. 12)

Mas esse conceito pode também chamar a nossa atenção para o fim do que Alfred N. Whitehead (1920) chamou de “bifurcação da natureza”, ou seja, a recusa decisiva da separação entre Natureza e Humanidade, que tem paralisado a ciência e a política desde a aurora do modernismo. (p. 13)

Esta Constituição [moderna] está completamente mal-adaptada para lidar com os conflitos que temos para nos orientar. E ela está tão mal-adaptada que mesmo a noção de conflito, ou ainda, para dar nome aos bois, o estado de guerra – traço definidor do Antropoceno – é constantemente minimizado ou tratado de maneira eufemística. Em tal época, tanto a política como a ciência assumem uma configuração totalmente diferente. (p. 14)

Antropoceno como conceito instável

O júri ainda não se decidiu sobre a persistência do conceito de Antropoceno (sua meia-vida pode ser muito mais curta do que imagino). Neste exato momento, entretanto, é a melhor alternativa que temos para sair da noção de modernização. (p. 13)

Ciência e política no Antropoceno

E este é um dos problemas que paralisam a política no Antropoceno. Não se trata de um debate racional. Trata-se, isso sim, de um de- bate para o qual os climatólogos do ipcc, que teriam sido considerados racionais em outro clima, estão sendo destituídos de poder. Eles são retratados como irracionais por aqueles que usam o poder da razão e apelam para a liberdade de investigação científica para poluir não apenas a atmosfera, mas também a esfera pública (para usar a expressão de James Hoggan). E isso, por quê? Porque ambos os lados – e eis o que produz a ideia de que há dois lados – usam o mesmo repertório ciência versus política. (p. 15)

Parte um: a ciência trata de fatos incontroversos e incontestáveis. Parte dois: a ciência fornece subsídios para as políticas. Uma vez que é nisso que todos os políticos – e todos os espectadores – acreditam, e uma vez que é essa também a maneira pela qual os programas de tv organizam os debates como se fossem juízes em uma sala de tribunal, torna-se incrivelmente fácil fazer emergir dois lados mesmo quando existe apenas um. (p. 15-16)

Historiadores da ecologia estão certos em dizer que não há provavelmente nada de completamente novo no conceito de Antropoceno, já que os conflitos por territórios e seus recursos são tão antigos quanto a raça humana e que os alertas quanto às consequências dessas “apropriações de terras” sobre o ambiente são tão antigos quanto a Revolução Industrial. O que me parece realmente novo nesse rótulo, o Antropoceno (afora a colaboração incomum entre geologia, história – ou, ainda, geo-história –, política e filosofia), é que ele modifica simultaneamente os quadros espaciais e temporais nos quais a ação está sendo situada; é que, além disso, este quadro modificou os dois principais pilares sobre os quais a metafísica da Ciência foi estabelecida desde a “Bifurcação da Natureza”, para usar a famosa descrição de Whitehead. (p. 27)

Negacionismo como prática imobilizatória

Mas não há a menor chance de chegarmos a uma conclusão final, uma vez que o sucesso dos negacionistas não reside em vencer algum conflito, mas simplesmente em assegurar que o resto do público esteja convencido de que há um conflito. Como poderiam os pobres e desamparados climatólogos levar a melhor em um pseudo-tribunal, cujo objetivo não é chegar a um veredito (uma vez que o veredito já tinha sido dado pelo relatório do ipcc)? A nova disciplina a que chamamos “agnotologia”, para usar uma expressão de James Proctor, é a produção deliberada de ignorância que funcionou maravilhosamente no caso do cigarro e do amianto e, com mais resistência, dos campos de concentração durante a Segunda Guerra. Ela vai funcionar muito melhor, e por muito mais tempo, no caso da ciência do clima, e isso por uma outra razão: diz respeito ao cotidiano de bilhões de pessoas. A chance de encerrar o debate é zero. Ademais, esperar por uma conclusão antes de traçar uma política tampouco se torna uma opção. (p. 16-17)

Os dois lados: ciência versus política e ciência com política

Há dois lados, é verdade, mas não entre climatólogos e negacionistas climáticos. Há dois lados: aqueles que atualizam uma versão tradicional da ciência versus política e aqueles que compreenderam que essa antiga epistemologia política (para chamá-la pelo seu verdadeiro nome) é o que enfraquece tanto a ciência como a política no momento em que as questões em jogo tornam-se amplas demais para um número grande demais de pessoas envolvidas e diretamente impactadas pelas decisões de ambas. É aí que devemos realmente distinguir um acordo do Holoceno e um acordo do Antropoceno. O que pode ter sido bom para os Humanos (e duvido que isto já teria sido o caso) perdeu todo o sentido para os Terranos [Earthbound ]. (p. 17)

A única coisa que elas não podem se permitir é atuarem separadamente : sem os instrumentos da ciência, o corpo político jamais saberá quantas entidades desconhecidas é preciso levar em consideração. E sem a política, o mesmo corpo político jamais saberá ordenar, selecionar e ranquear aquele número desconcertante de agências com as quais ele tem de compor progressivamente um mundo comum – que é a definição que propus para a política com ciência. (p. 18)

Não há conflito entre ciência e política, mas há conflito entre duas epistemologias políticas radicalmente opostas, cada uma com sua própria definição do que vêm a ser ciência e política, e de como ambas poderiam colaborar uma com a outra. (p. 19)

Sobre um essencialismo ou um positivismo "estratégicos"

Existem, é claro, várias razões para imitar o que as feministas chamam de “essencialismo estratégico” e para empregar, quando necessário, uma forma de “positivismo estratégico”, como se pudéssemos confiar a uma ciência do clima estabelecida a missão de servir como premissa incontestável para políticas. Mas mesmo se essa estratégia fosse bem-sucedida (e a reposta ao último relatório do ipcc indica que ela falhou do mesmo modo que todas as tentativas prévias de “convencer” o público), ela não resolveria a questão, pois permaneceria como um ganho pedagógico, e não político. Decerto, mais gente saberia, o que é sempre bom, mas isso não levaria as pessoas muito além do fato de apenas saber. Não estamos lidando aqui com matters of fact inquestionáveis, mas com matters of concern postos em disputa. (p. 19-20)

Senso comum como ato de urgência?

Em situações em que a não-ação não é uma opção, ou em situações em geral (considerando-se que em pouquíssimos casos existem consensos absolutos), o melhor que podemos fazer é nos guiarmos pelo "senso comum"? Senso comum como tradição e cultura? Não seria mais coerente que ao invés disso (buscar um comum, uma média das opiniões), se escolhesse de fato um conjunto de valores (políticos, se quiser, uma ponderação específica e consciente) como mediadores de nossas tomadas de decisão?

Senso comum não seria o nome dado aos valores reproduzidos pelas parcelas detentoras de poder na sociedade sempre, ou quase sempre, visando a reprodução do atual estado de coisas? Penso aqui em ideologia (no sentido de Marx).

Tomar decisões diante de evidências contraditórias sobre questões urgentes é uma atitude comum a cientistas, políticos e membros comuns do público. Tal atitude baseada no senso comum ganha plena força quando o território dessas pessoas se encontra ameaçado. O sentimento a que poderíamos chamar de mobilização é perigoso, incômodo e intranquilo, uma fonte de consequências mal definidas; mas uma coisa é certa: em caso de guerra, a atitude não é de complacência, apaziguamento e delegação aos experts . (p. 22)

Guerra entre a ciência engajada "do Antropoceno" e a ciência moderna "do Holoceno"

Para eles [, adversários dos militantes e dos "cientistas engajados"], trata-se de uma violenta apropriação de terras : a terra é deles e eles tomam conta dela rapidamente. (p. 22)

Embora possa ser perigoso falar em guerra – quando há um estado de paz – é ainda mais perigoso negar que há uma guerra quando se está sob ataque. Os apaziguadores acabariam se tornando negacionistas – desta vez não por negarem a ciência do clima –, mas por negarem que há uma guerra pela definição e controle do mundo que habitamos coletivamente. (p. 22-23)

Há decerto uma guerra pela definição e controle da Terra: uma guerra que coloca uns contra os outros – para ser um pouco dramático –, Humanos que vivem no Holoceno e os Terranos que vivem no Antropoceno. (p. 23)

O que é um território senão isso sem o qual não poderíamos viver? Listemos todos esses seres, essas agências sem as quais nada seria possível. Identificaremos então os territórios que estão sob ataque, aqueles que vale a pena defender e aqueles que podem ser abandonados. Feito isso, poderemos comparar nossas chances de perder ou de ganhar. (p. 24-25)

Multiplicidade de agências possíveis que dependem da epistemologia subjacente

Em ambos os relatos, ["carbono inocente" e "democracia do carbono",] o carbono não exerce o mesmo papel, não recebe as mesmas qualificações, não tem as mesmas propriedades. Tudo bem. Isso não prova qualquer distorção dos fatos científicos. Isso significa que há várias maneiras pelas quais o carbono pode entrar na composição de um mundo comum. Se os mesmos átomos podem gerar materiais tão diferentes quanto o grafite e o diamante, deveríamos nos surpreender com o fato de que o mesmo carbono nas mãos de um negacionista do clima tenha diferentes arranjos e virtudes, isto é, diferentes agências se comparado com os átomos de carbono de um historiador do Oriente Médio, como Mitchell? “Inocência” e “culpa” são propriedades de átomos que – de maneira bastante precisa e literal – dependem de sua composição. (p. 24)

A paz política como desfecho

Não uma paz pedagógica obtida por meio do repertório ciência-versus-política: como se pudéssemos começar a discutir políticas agora que aprendemos todos com as ciências naturais, agora que passamos a concordar necessariamente uns com os outros acerca do que é feito o mundo. Em vez disso, uma paz política, aquela negociada pelas facções bélicas que, tendo exaurido todas as outras opções e sabendo que nem o “Deus” nem a “Natureza” bordados em seus estandartes estão realmente por detrás deles, aventuram-se em um acordo como se não houvesse arbítrio algum acima deles. (p. 25)

A principal dife- rença entre as duas formas de paz é que a pedagógica vem antes de toda guerra – nesse sentido, a guerra é simplesmente o equívoco irracional daqueles que não entenderam as leis da natureza ou da economia: a paz será trazida de volta já que todos terão descoberto a verdade a respeito do que as coisas são e sempre foram. A paz pedagógica é semelhante à intervenção policial ou ao que hoje é chamado de “governança”. Por contraste, a paz política vem depois que a guerra exauriu as partes que guerreiam e acaba por compor o que é exatamente nomeado, um modus vivendi, isto é, um conjunto emaranhado de arranjos improvisados visando a sobrevivência. (p. 25)

Isso ocorre porque a paz política não é ditada pelo que já está lá, mas pela consciência progressiva de que não há mais como postergá-la. Essa postergação é parte do sonho modernista, e também sua definição de futuro, um futuro que não é senão um voo que vem do passado e um “vendar de olhos” para o que está por vir. (p. 26)

Teologia do Antropoceno

O que eles [visões teológicas de Jean-Pierre Dupuy e Michael Northcott] têm em comum é que do mesmo modo que propõem uma base espacial diferente para cada facção bélica, oferecem um outro ritmo temporal para a ação. A ação não pode ser postergada porque o tempo não flui do presente para o futuro – como se tivéssemos de escolher entre dois cenários e esperar que tudo corra bem – mas como se o tempo fluísse daquilo que está vindo (“l’avenir”, como se diz em francês para diferenciar de “le futur”) para o presente, o que é uma outra maneira de considerar “apocalípticos” os tempos nos quais deveríamos viver. (p. 26)

Não há mais fronteira modernizadora. Em vez disso, há tantas novas linhas de conflitos que uma Gaia-política totalmente diferente passa agora a redesenhar todos os mapas. Ao recombinar todos os ingredientes do que costumava a pertencer aos diferentes domínios da subjetividade e da objetividade, a própria noção de Antropoceno torna-se realmente uma imensa fonte de confusão – porém, uma fonte bem-vinda. (p. 28)


  1. LATOUR, B. Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, v. 57, n. 1, p. 11-31, 2014. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/87702. Acesso em: 20 jun. 2021.