Forma, Informação, Potenciais
Fichamento da fala seguida de debate "Forma, informação, potenciais"1 de Gilbert Simondon.
Contexto
Conferência pronunciada por Simondon no âmbito da Sociedade Francesa de Filosofia em 1960, seguida de debate com: G. Berger, G. Bouligand, D. Dugué, J. Hyppolite, G. Marcel, P. Ricoeur, P.-M. Schuhl, J. Wahl e S. Weinberg. O texto integral desta conferência, a partir do qual apresentamos esta tradução, foi publicado no Bulletin de La Société Française de Philosophie, nº 54, v. 5, em 1960. (p. 194)
Ausência de uma teoria geral das ciências humanas e da psicologia. Axiomatização possível.
A ausência de uma teoria geral das ciências humanas e da psicologia incita o pensamento reflexivo a buscar as condições de uma axiomatização possível. Em vista deste trabalho que comporta necessariamente um certo aporte de invenção e não pode ser o resultado de uma pura síntese, convém trazer à luzos principais sistemas conceituais que foram empregados, sem conceder privilégio aos mais recentes: as descobertas da teoria química no início do século XIX retomaram os esquemas atomísticos definidos a mais de vinte séculos, e os enriqueceram com a contribuição da análise ponderal. (p. 194)
Esboço da axiomáticaL forma, informação e potenciais + operação transdutiva
De maneira análoga, poder-se-ia reevocar os princípios de Díade indefinida, de Arquétipo, de Forma e de Matéria, e os reaproximar dos modelos explicativos recentes da Psicologia da Forma, em seguida aos da Cibernética e da Teoria da Informação, recorrendo também a noções extraídas das ciências físicas, como a de potencial. Gostaríamos de mostrar que um esboço da axiomática das ciências humanas, ou ao menos da psicologia, é possível se tentarmos apreender conjuntamente as três noções de forma, informação e potencial, com a condição de acrescentar, para religá-las e organizá-las interiormente, a definição de um tipo particular de operação que aparece quando há forma, informação e potencial: a OPERAÇÃO TRANSDUTIVA. (p. 194)
Forma: assimetria que privilegia a forma sobre aquilo que toma forma.
1° A NOÇÃO DE FORMA, em todas as doutrinas onde ela aparece, desempenha um papel funcional constante: o de um germe estrutural que possui um certo poder diretor e organizador; ela supõe uma dualidade de base entre dois tipos de realidade, a realidade que recebe a forma e aquela que é a forma ou que guarda em si a forma; este privilégio da forma reside em sua unidade, em sua totalidade, em sua coerência essencial consigo mesma. Mesmo na Gestalpsychologie {Psicologia da Gestalt, ou da Forma}, a Forma, que não é anterior a nenhuma matéria, conserva, no entanto, sua superioridade de Ganzheit {Totalidade}, e há hierarquia das formas (boa forma, melhor forma). Imanente ou transcendente, anterior à tomada de forma ou contemporânea desta operação, ela conserva seu privilégio de superioridade em relação à matériaou aos elementos; o fundamento de toda teoria da forma, arquetípica, hilemórfica ou gestaltista, é a assimetria qualitativa, funcional e hierárquica da Forma e disto que toma forma. (p. 195)
Informação: reciprocidade, equivalência e reversibilidade (entre termos ativo e passivo)
2° A NOÇÃO DE INFORMAÇÃO é, ao contrário, a pedra angular de toda doutrina da reciprocidade, da equivalência, inclusive mesmo da reversibilidade do termo ativo e do termo passivo na troca. O emissor e o receptor são as duas extremidades homogêneas de uma linha na qual a informação é transmitida com o máximo de segurança quando a operação é reversível; não é só o fato do controle, mas a condição mesma da inteligibilidade que supõe reversibilidade e univocidade. Codificação e decodificação se dão de acordo com as convenções comuns ao emissor e ao receptor: somente um conteúdo, e não um código, pode ser transmitido. Pode-se associar à Teoria da INFORMAÇÃO todo tipo de explicação que supõe a simetria, a homogeneidade dos elementos que se associam e tomam forma por um processo aditivo ou de justaposição; mais geralmente, os fenômenos quantitativos de massa, de população, pertencentes à teoria do acaso, que supõem a simetria dos elementos (e seu caráter indeterminado), podem ser pensados em teoria da informação. (p. 195)
Operação transdutiva: propagação de estrutura a partir de germe estrutural
3° A OPERAÇÃO TRANSDUTIVA seria a propagação de uma estrutura que ganha gradativamente um campo a partir de um germe estrutural, como uma solução supersaturada cristaliza a partir de um germe cristalino; isso supõe que o campo esteja em equilíbrio metaestável, ou seja, contenha uma energia potencial que possa ser liberada apenas pelo surgimento de uma nova estrutura, que é como uma resolução do problema; desde então, a informação não é reversível: ela é a direção organizadora {196} que emana à curta distância do germe estrutural e ganha o campo: o germe é emissor, o campo é receptor, e o limite entre emissor e receptor se desloca de maneira contínua quando a operação de tomada de forma se produz à medida que progride; poder-se-ia dizer que o limite entre o germe estrutural e o campo estruturável, metaestável, é um MODULADOR; é a energia de metaestabilidade do campo, portanto da matéria, que permite à estrutura, portanto à forma, avançar: os potenciais residem na matéria, e o limite entre forma e matéria é um relé amplificador. (p. 195-6)
Fonômenos de massa como acumulação de energia potencial em um campo
Os fenômenos de massa não são de modo algum negligenciáveis, mas devemos considerá-los como as condições de acumulação da energia potencial em um campo, e, falando propriamente, como as condições da criação do campo enquanto domínio possível de transdutividade, o que supõe uma relativa homogeneidade e uma repartiçãoparte por parte dos potenciais energéticos; a relação forma-matéria se transpõe então em relação transdutiva e em progresso do par estruturante-estruturado através de um limite ativo que é passagem de informação. (p. 196)
Psicossociologia dos objetos técnicos em Simondon
{Gaston Berger} Senhoras, Senhores, solicitamos a um jovem mestre de nosso Ensino Superior, Sr. Gilbert Simondon, vir esta tarde lhes apresentar as pesquisas que ele desenvolve há vários anos, tanto em psicologia quanto em sociologia, as quais ele associa estreitamente. Ele não faz nem uma psicologia do trabalho, nem uma sociologia do homem no trabalho, nem uma sociologia do emprego dos objetos fabricados: é à própria técnica e ao próprio objeto que ele dedica sua atenção. Ele se aplica a mostrar que há um domínio da tecnicidade que tem sua originalidade própria, que não poderia se confundir nem com o domínio da teoria pura, nem com o domínio da prática, no sentido em que os filósofos entendem geralmente este termo. (p. 196)
O objeto técnico como modelo das relações entre forma, informação e potencial. Comparação das ciências humanas e ciências naturais. Exemplo da teoria eletromagnética como síntese criadora.
Senhor Diretor, Senhoras, Senhores, como acaba de indicar o Sr. Diretor Berger, existe uma certa relação entre um estudo do objeto técnico e o problema aqui apresentado, a saber: Forma, Informação e Potenciais. No entanto, o objeto técnico é destinado apenas a servir de modelo, de exemplo, talvez de paradigma, para interpretar – de uma maneira que não se busca apresentar como nova, mas que se quer explicativa – o problema das relações entre a noção de forma, sob suas diferentes espécies, a noção de informação, e enfim a de potencial ou de energia potencial. O que nos determinou a buscar uma correlação entre forma, informação e potencias, é a vontade de encontrar o ponto de partida de uma axiomática das ciências humanas. Nos nossos dias, fala-se de ciências humanas e existem muitas técnicas do manejo humano, mas a palavra “ciências humanas” é sempre no plural. Este plural significa provavelmente que não se chegou a definir uma axiomática unitária. Por que há as ciências humanas, enquanto há uma física? Porque sempre somos obrigados a falar de psicologia, de sociologia, de psicossociologia; por que somos obrigados a distinguir diferentes campos de estudo no interior da psicologia, da sociologia, da psicologia social? E não falo das outras ciências humanas possíveis. Para tomar apenas essas três, a saber, aquela que se propõe estudar os grupos, a que se propõe estudar o ser individual, e a que explica a correlação entre o ser individual e os grupos, encontramos uma multidão de campos e um fracionamento quase indefinido do estudo; isto revela que, mesmo a propósito de uma única dessas ciências humanas, a busca da unidade é muito problemática e que é preciso fundar uma teoria frequentemente redutora para chegar a uma unidade no interior de cada uma dessas ciências. Observa-se uma unidade de tendências antes que uma unidade de princípios explicativos. Se compararmos a situação atual das ciências humanas à das ciências da natureza, tal como ela se apresentava na Antiguidade, no século XVI, ou no início do século XIX, encontramos que, no início do século XIX, havia uma química e uma física, talvez até várias físicas e várias químicas. Ao contrário, no início do século XIX e no início do século XX, vimos nascer pouco a pouco grandes teorias que trouxeram possibilidades de axiomatização. Assim, no {198} domínio da eletricidade e do magnetismo viu-se aparecer, por volta de 1864, a teoria eletromagnética da luz de Maxwell, que é e provavelmente permanecerá o exemplo de uma síntese criadora; síntese, porque ela reúne os elementos antigos de diferentes pesquisas sobre as ações recíprocas das correntes e dos campos, sobre os fenômenos de indução, e criadora, porque ela traz uma noção nova graças à qual a síntese é possível e sem a qual a axiomatização não existiria: as correntes de deslocamento; estas correntes de deslocamento tornaram-se a propagação do campo eletromagnético, tal como Hertz a tornou manifesta, experimentalmente, vinte anos mais tarde. (p. 197-8)
Possibilidade de uma axiomatica das ciências humanas (Ciência Humana)
Não se poderia realizar a mesma operação nas ciências humanas? Não se poderia fundar a Ciência Humana, respeitando, claro, as possibilidades de aplicações múltiplas, mas tendo, ao menos, uma axiomática comum aplicável aos diferentes domínios? (p. 198)
Da físico-química à correlação psicologia-sociologia [psicossociologia]
O que nos leva a agir dessa forma é a visão da evolução das ciências da natureza. Havia uma física e uma química separadas: existe agora uma físico-química, e vemos as correlações entre física e química tornarem-se cada vez mais fortes. Não haveria entre os dois extremos, isto é, entre a teoria dos grupos, que é a sociologia, e a teoria do indivíduo, que é a psicologia, que buscar um meio termo que seria precisamente o centro ativo e comum de uma axiomatização possível? Com efeito, vemos em vários casos que, mesmo se considerarmos a psicologia individual a mais diretamente monográfica e interiorista, mesmo se considerarmos a sociologia dos maiores conjuntos, seremos sempre levados a uma busca de correlação, tornada necessária pelo fato de que não existe, em sociologia, o grupo de todos os grupos, nem, em psicologia, no interior de um indivíduo, um elemento, um átomo de pensamento que se poderia isolar para fazer dele o análogo do corpo simples químico, que permita recompor tudo a partir das combinações com outros elementos simples. O isolamento de uma mônada, átomo psicológico, ou de um grupo humano que seria uma totalidade, ou melhor, uma espécie de universo social, é impossível. Não há, em sociologia, uma “humanidade”, e não há, em psicologia, um elemento último; estamos sempre no nível das correlações, seja ao nos dirigir no sentido da investigação dos elementos interiores ao indivíduo, seja indo na direção dos grupos sociais mais vastos. (p. 198)
Forma como noção que poderia correlacionar psicologia e sociologia
Nessas condições, a lição extraída da evolução das ciências da natureza nos encoraja a reevocar os princípios mais antigos da explicação que foram propostosno interior das ciências humanas, na medida em que esses princípios são os princípios de correlação. Eis porque acreditamos poder escolher noções tais como forma, {199} informação e potenciais, e começar pela noção de forma. Esta noção é provavelmente uma das mais antigas definida pelos filósofos que se interessaram pelo estudo dos problemas humanos. (p. 198-9)
Forma da filosofia antiga (arquétipo em Platão e hilemorfismo em Aristóteles) à Gestalt
Seguramente, ela evoluiu bastante, mas a encontramos no Arquétipo platônico; depois na relação Forma-Matéria em Aristóteles e no esquema hilemórfico; é ela que reencontramos após um longo caminho, ora platônica, ora aristotélica, na Idade Média e no século XVI; é ela que reencontramos ainda no final do século XIX e no século XX, nesta retomada das noções platônicas sob uma nova influência que é a Gestaltpsychologie. A Gestaltpsychologie renova a noção de forma e faz, em certa medida, a síntese da forma arquetípica platônica e da forma hilemórfica aristotélica, graças a uma noção explicativa e exemplar, extraída das ciências da natureza: o campo. Esforçaremo-nos para mostrar que a noção de forma é necessária, mas não permite, sozinha, fundar uma axiomática das ciências humanas, a menos que seja apresentada no interior de um sistema que compreenda a noção de informação e a de potenciais, no sentido em que se fala de energia potencial. Portanto, tentarei traçar uma evolução histórica da noção de forma, inicialmente arquetípica, posteriormente hilemórfica, e por fim gestaltista, depois procurarei mostrar em que ela é insuficiente para o nosso propósito axiomatizante; acrescentarei então um certo número de considerações relativas à Informação, e enfim tentarei apresentar aquilo que permitiria reunir a noção de Informação à noção de Forma: é isto o que chamava de operação transdutiva, ou ainda de modulação, que pode existir apenas em um domínio de realidade em estado metaestável, contendo energia potencial. (p. 199)
Modulação: operação do transistor (e não fm/am)
Devemos acrescentar uma palavra explicativa a propósito do termo modulação. Esta palavra não será empregada no sentido técnico amplo que ela tem quando se fala de modulação do estágio final do emissor, mas no sentido restrito que designa a operação que se realiza em um relé amplificador com um número infinito de estados, como, por exemplo, um tubo de cátodo quente – tríodo, tétrodo, pêntodo, – ou um transistor. É a operação pela qual um sinal de fraca energia, como aquele que se envia sobre a grade de comando de um tríodo, atualiza com um certo número de graus possíveis a energia potencial representada pelo circuito anódico e o efetor, que é a carga exterior desse circuito anódico. O termo não é perfeito, posto que ele é ligeiramente ambíguo, dado que se entende também por modulação esta influência mútua de duas energias, uma que é suporte futuro de informação, como, por exemplo, uma oscilação de alta frequência, e a outra que é a energia já informada por uma sinal, {200} como, por exemplo, a corrente de baixa frequência que modula a oscilação de alta frequência no procedimento de modulação anódica dos emissores. Há aí, portanto, uma precisão semântica que é preciso empregar desde o início para definir este tipo de operação de interação física. (p. 199-200)
Forma arquetípica em Platão
Se a psicologia pura e a sociologia pura são impossíveis, porque não há elemento extremo em psicologia e não há o conjunto de todos os conjuntos em sociologia, é necessário ver como os psicólogos e os sociólogos da Antiguidade trataram os processos de interação e de influência. Tomemos inicialmente a oposição significativa e complementar que existe entre a forma arquetípica em Platão e a forma hilemórfica em Aristóteles. A forma arquetípica em Platão é o modelo de tudo o que é superior, eterno e único, segundo um modo vertical de interação. O Arquétipo, a arché, a origem, e túpos, a impressão – é o modo primeiro. Esta palavra designa o molde de metal por meio do qual se pode cunhar as moedas, a matriz, como se dirá mais tarde. O túpos é a impressão, e é também o golpe: com um pedaço de aço gravado, pode-se imprimir os caracteres sobre uma plaqueta de metal precioso, e este arquétipo permite dar a mesma figura, a mesma configuração, a esta matéria deformável que é a plaqueta de metal. Se o arquétipo é feito de bom aço, todas as peças cunhadas com a mesma matriz se assemelham entre si e são reconhecíveis, porque, de maneira causal, elas provêm da mesma operação de modulação, a partir do arquétipo. Certamente o arquétipo pode degradar-se, mas deve-se observar a sua superioridade ontológica: se uma peça é perdida, perde-se apenas o metal, enquanto que se o arquétipo é perdido, é preciso gravar um outro a partir da peça, e a peça pode conter uma perfeiçãomenor que a do arquétipo; o segundo arquétipo não será absolutamente semelhante ao primeiro. Dito de outro modo, de uma peça a uma outra peça cunhada com o mesmo arquétipo, há um certo número de flutuações aleatórias – tal grão de poeira, tal desigualdadedo metal –, recobertas por uma tendência central; esta tendência central, normativa e superior, é representada pela forma primeira que é a da matriz, do arquétipo. (p. 200)
Forma arquetípica como modelo do processo de interação (não recíproca, irreversível)
Aqui se encontra um modelo de processo de interação que dificilmente merece ser chamado de interação, mas que é um termo extremo de todos os outros tipos possíveis de interação: é a interação não recíproca, irreversível, sem retorno, entre a peça e o arquétipo, que contém uma assimetria fundamental: o Arquétipo é superior à peça; não há relação complementar, pois o arquétipo não tem necessidade das peças para existir: ele é tanto anterior como superior; ele existe antes de toda {201} peça. Este é o modelo da teoria das ideias em Platão: tà eíde, as Formas, que são como os arquétipos, permitindo explicar a existência dos sensíveis; os sensíveis são comparáveis às peças que foram cunhadas com as matrizes, as Ideias; as matrizes são imutáveis, elas existem para além da esfera dos fixos e não se degradam. O ser engendrado que está na génesise na phthorá, o sensível, pode se degradar, mas a Forma, tò eídos, não se degrada. Ela tampouco é suscetível de progresso, o que conduz a uma teoria do conhecimento na qual o homem pode recordar-se apenas da forma, na ocasião do encontro do sensível e das dificuldades que se erguem quando o sujeito que conhece aborda o sensível. Ele pode apenas se recordar da visão das formas, e interpretar o sensível a partir dessa visão, sem verdadeiro movimento indutivo do pensamento. Por quê? Porque toda perfeição da forma, toda perfeição do conteúdo estrutural, é dado na origem. Platão constrói um universo metafísico e um sistema epistemológico nos quais a perfeição é dada na origem. A perfeição, a mais alta riqueza de estrutura, reside nesse mundo que está além da esfera dos fixos, isto é, ele mesmo é eterno e transcendente, e não está submetido nem à degradação nem ao progresso. A degradação caracteriza somente o que é engendrado; o que é engendrado a partir da relação de exemplaridade pode se degradar, ou então, somente na medida emque a alma é irmã das Ideias ela pode governar uma ascensão em direção à perfeição original; este é o primeiro platonismo, no qual a intenção da filosofia é de ascender a partir deste jardim dos Deuses em que estamos –a expressão é atribuída a Sócrates – em direção ao mundo onde reencontraremos os arquétipos. (p. 200-1)
Forma arquetípica em Platão como um retorno à Ideia
Se quiséssemos descrever com um traço esta maneira de considerar a forma, diríamos que a forma, sendo perfeita desde a origem, o platonismo constitui um sistema de conservação e de respeito da Ideia dada de uma vez por todas, ou então um retorno à Ideia; a ciência é uma recordação, uma anamnèsis, ela é também uma contemplação, quando se redescobriu o que a alma se recorda por que ela é adelphè tôn eídon, irmã das Ideias. A moral individual é uma conservação; é a conservação da estrutura do indivíduo pela qual ele realiza a ideia de homem; é a conservação da relação que deve existir justamente entre nous, thumóse epithumía, segundo um princípio de justiça (mas, de fato, seria preciso dizer “justeza”) que salvaguarda o sistema estrutural que caracteriza o indivíduo. (p. 201)
Forma arquetípica em Platão ~ sociologia implícita
Acontece que a Forma, tal como é apresentada no platonismo, superior e imutável, convém perfeitamente para representar a estrutura do grupo, e funda uma sociologia implícita, uma teoria política do grupo ideal. Esse grupo é mais estável que {202} os indivíduos e é dotado de uma tal inércia que parece permanente; aliás, a permanência relativa é considerada por Platão como sendo ou devendo ser uma verdadeira fixidez: sabemos que a cidade ideal é a que não deve variar. O filósofo-magistrado, que conhece o número da cidade e a medida que caracteriza as relações entre as diferentes classes sociais, como ele conhece a relação entre as virtudes do indivíduo (do nous, do thumóse do epithumía), – o filósofo-magistrado tem por tarefa ser o guardião da constituição; a lei é o que permite à cidade não se modificar, do mesmo modo que as leis físicas nos lembram os invariantes. É justamente uma descoberta do invariante que Platão fez; porém, sabemos que, segundo o exemplo das ciências, poder-se-ia considerar um invariante como algo característico de uma teoria física: conservação de energia, conservação da matéria, conservação da totalidade constituída pela matéria e pela energia. Para Platão, o invariante é a Ideia, mas esta ideia é a estrutura do grupo, que funda uma sociologia metafísica, uma sociologia pura tornada metafísica. Uma tal concepção da forma conduz a um idealismo realista e a um repúdio de toda possibilidade de empirismo lógico ou de combinatória física, comparável àquela de Leucipo e Demócrito, que constitui o ser a partir dos elementos e de um encontro fortuito devido ao acaso. Sem duvida, Platão não estava absolutamente satisfeito com sua doutrina, pois vemos, graças ao que Aristóteles nos deixou nos livros M e N da Metafísica, que, perto do fim de sua vida e no ensino iniciático, Platão queria encontrar uma fórmula capaz de explicar o devir: ao invés de buscar fugir daqui de baixo, ele queria se imortalizar no sensível. A doutrina das ideias-número manifesta talvez um desejo de descobrir uma significação mais precisa, mais essencial, no devir. Ainda do mesmo modo, a noção de Díade indefinida (do grande ao pequeno, do quente ao frio), que permite explicar com mais precisão o métrion, se aplica melhor que o eídos aos sensíveis e ao seu devir genético. No entanto, o essencial da inspiração platônica (ao menos sob a forma que passou para a posteridade e se tornou o platonismo), é a forma arquetípica, ou seja, a explicação e a apresentação de um processo de influência que situa a estrutura completa antes de todos os seres engendrados e acima deles. (p. 201-2)
Forma hilemórfica em Aristóteles. Biologia implícita.
Ao contrário, a forma do esquema hilemórfico, tal como ela se apresenta em Aristóteles, é uma forma que está no interior do ser individual, no súnolon, no “conjunto inteiro” que é o ser individual; ela não é nem anterior nem superior à génesise à phthorá, à geração e à corrupção; ela intervém no interior do jogo de interação entre estrutura e matéria, no interior do ser sensível. Por outro lado, ela não {203} é estritamente eterna ou, em todo caso, imutável, já que ela passa da virtualidade à atualidade no interior do indivíduo. Ela não é sem relação com a matéria: a matéria almeja a forma, como a fêmea, o macho; existem tendências no vivo, que é um campo de interaçõesrecíprocas e complementares. Uma relação “horizontal”, e não mais vertical como em Platão, entre o individual e a forma, impede de pensá-la sob as espécies do grupo, como um microcosmo que é um análogo da cidade. Temos nesta doutrina uma significação dadaao ser individual, a partir de uma biologia implícita ou explícita. Se Platão representa uma Sociologia pura tornada metafísica, segundo a qual as estruturas do grupo, e do grupo de todos os grupos, o Universo, se tornaram formas arquetípicas, Aristóteles, ao contrário, representaria a tendência inversa, a escolha primeira do ser individual para encontrar a explicação do devir no processo de interação que ele encerra. O devir aparece então como constitutivo do ser: há em Aristóteles uma ontogênese sempre subjacente, enquanto que para Platão não acontece o mesmo. Por outro lado, o par hemimórfico, a relação forma-matéria, para Aristóteles, explica o devir que impulsiona o ser para seu estado de enteléquia, de plena realização, enquanto que Platão, com a forma eterna, é obrigado a recorrer, para explicar o devir e mesmo a criação dos sensíveis, a um motor, a um poder que não é eídos, que não é estrutura: este poder é o Bem, tó agathón que é épékeina tès ousías, que ilumina o mundo das ideias e que projeta, se é possível dizer, a sombra das ideias sob forma de sensíveis, assim como o sol projeta as sombras dos objetos ou como, ainda, o pur méga kaiómenon, “o grande fogo que arde” dos taumaturgos projeta a imagem dos quadros recortados e dos andriánta, sobre o muro-tela que os espectadores admiram. A relação de exemplaridade com degradação progressiva a partir da ideia, mostra bem a existência de um motor que não é o eídos, nem a relação entre a ideia e o sensível, entre a forma e a matéria que tenha recebido forma. Este poder, eventualmente completado por aquele do demiurgo, nunca é inerente à ideia nem à relação da ideia e do domínio que recebe a estrutura. Ao contrário, para Aristóteles, existe um poder do devir no par hilemórfico; a relação forma-matéria no interior do vivo é uma relação que se lança para o futuro; o ser tende a passar ao seu estado de enteléquia; a criança cresce por que ela tende para o adulto; a semente que contém a essência virtual do carvalho, a forma do carvalho em estado implícito, tende a se tornar uma árvore adulta inteiramente desenvolvida. Há aqui uma interação, de alguma maneira horizontal entre forma e matéria, com um certo grau de reciprocidade. No domínio do conhecimento, isto conduz Aristóteles a um empirismo, {204} já que é o indivíduoque é primeiro, e que, sendo o súnolon, contém em si o poder de devir; o homem pode se fiar do encontro sensível do ser individual para fundar o conhecimento, e a forma sozinha não contém mais todo o conhecimento. Sem nenhuma dúvida, a marcha do conhecimento consiste em ir de abstração em abstração: dos diferentes sentidos, se passa ao senso comum, e depois às noções mais abstratas; mas, quando se vai da apreensão dos sensíveis para as noções de espécies, em seguida das noções de espécies para aquelas dos gêneros, perde-se a informação, a perfeição do conhecimento; e, para Aristóteles, a noção mais alta, a de ser, é também a mais vazia; existe correlação inversa da compreensão e da extensão; um termo que se aplica a tudo, como o ser, é quase vazio de conteúdo, enquanto que para Platão, posto que a forma arquetípica é primeira, o conhecimento do Uno, ou o conhecimento do Bem, são os mais altos e os mais ricos. Portanto, estamos lidando com duas abordagens que se opõem. Aliás, poder-se-ia dizer que a história do pensamento desde Platão e Aristóteles se contentou em opor os dois sentidos da noção de forma para estes dois pensadores, fazendo delas os polos extremos do papel que se pode atribuir à forma, à estrutura, quando se quer explicar os processos de interação. A forma de Aristóteles convém perfeitamente ao devir e ao indivíduo em devir, pois ela comporta a virtualidade, a tendência, o instinto; é uma noção eminentemente operatória. Consequentemente, ela convém para interpretar os processos ontogenéticos, masconvém muito menos para compreender os grupos. A noção de cidade em Aristóteles recorre necessariamente à noção de convenção interindividual, enquanto que para Platão a realidade primeira é o grupo, a cidade, se bem que o individuo é conhecido como um análogo da cidade, uma reprodução de sua estrutura, um microcosmo por oposição a esse macrocosmo que é a cidade, uma micro-organização que reproduz a macro-organização: isso leva a uma tipologia individual fundada sobre uma tipologia social e política: a estrutura democrática ou tirânica, a organização mental e moral do magistrado ou do artesão são os modos de ser individuais; a cidade e a casta são as realidades primeiras que se refletem no regime interior do indivíduo e lhe dão uma estrutura. (p. 202-4)
Incapacidade de síntese das ideias de forma na Idade Média e Renascimento > Campo no eletromagnetismo e na Psicologia da Forma.
O longo caminho da Idade Média e do Renascimento não encontrou perfeitamente, parece, uma correlação, um metaxú verdadeiro que reuniria em si, de maneira completa, a forma arquetípica e a forma hilemórfica. Sem dúvida alguma, existem doutrinas de extremo interesse, como por exemplo a de Giordano Bruno, que identifica os diferentes tipos de causas, e que, através de um vocabulário bem mais {205} aristotélico, permitira talvez esboçar uma síntese da forma arquetípica e da forma aristotélica. No entanto, faltava uma chave, na análise dos processos de interação, uma noção que se pudesse tomar como paradigma, e esta noção apareceu somente no fim do século XIX, na Psicologia da Forma: é a noção de campo; ela é um presente feito para as ciências humanas pelas ciências da natureza. Ela estabelece uma reciprocidade de estatutos ontológicos e de modalidades operatórias entre o todo e o elemento. Com efeito, em um campo qualquer que seja, elétrico, eletromagnético, de gravidade, ou de não importa qual outra espécie, o elemento possui dois estatutos e preenche duas funções: 1° na medida em que recebe a influência do campo, ele está submetido às forças do campo; ele está em um certo ponto do gradiente pelo qual se pode representar a repartição do campo; 2° ele intervém no campo na qualidade de criador e ativo, ao modificar as linhas de força do campo e a repartição do gradiente; não se pode definir o gradiente de um campo sem definir o que há em tal ponto. Tomemos o exemplo de um campo magnético: dispomos um imã aqui, um outro no fundo da sala, um outro neste canto; eles estão orientados de uma maneira definida, e possuem massas magnéticas mensuráveis. Imediatamente, um determinado campo magnético existe como resultado da interação dos campos destes três imãs. Coloquemos agora um pedaço de ferro puro do exterior – previamente aquecido a uma temperatura superior ao ponto de Curie, portanto não imantado; esse pedaço de ferro não possui o modo seletivo de existência que se caracteriza pela existência dos polos. No entanto, desde que o coloquemos em um campo, ele ganha uma existência em relação a este, ele se imanta. Ele se imanta em função do campo criado pelos três imãs precedentes, mas desde que ele se imanta, e pelo fato de que ele se imante, ele reage sobre a estrutura deste campo e torna-se cidadão da república do conjunto, como se ele mesmo fosse um imã criadordeste campo: tal é a reciprocidade entre a função de totalidade e a função do elemento no interior do campo. A definição do modo de interação característica do campo constitui uma verdadeira descoberta conceitual. Antes dessa descoberta, Descartes investigou as complicações mecânicas que honram o seu gênio criador, mas que não alcançam uma elucidação definitiva dos fenômenos, para representar, por processos de ação por contato, as influências à distância. Para explicar como um imã atrai uma outra massa magnética, ele é forçado a imaginar gavinhas de matéria sutil; derivadas dos polos do imã, elas se enroscam umas nas outras, se repelindo ou se afastando, o que é aliás – mesmo no nível hipotético e formal – difícil de imaginar: se um dos sentidos de rotação reaproxima os {206} polos, o retorno de um dos imãs deveria apenas fazer cessar a ação à distância e não criar a ação repulsiva que a experiência indica. Descartes não pôde encontrar um esquemade processo de interação satisfatório porque ele não tinha a noção de campo. Ele carregou a matéria sutil de todas as características que, hoje, são atribuídas aos campos. Ora, esta noção de campo conheceu um desenvolvimento muito notável no século XX. Aofim do século XVIII e no início do século XIX, o campo magnético e o campo elétrico foram descobertos e analisados; em seguida vem a interação entre as correntes e os campos (Arago, Ampère), depois, por volta de 1864, apareceu a teoria eletromagnética da luz. Ela define um novo tipo de campo, o campo eletromagnético, que não é apenas um campo que se poderia chamar estático como os precedentes, mas que comporta a propagação de uma energia, e oferece, entre o elemento e o todo, uma reciprocidade muito mais notável, e ricamente mais exemplar, ao definir um acoplamento dinâmico entre os elementos. Se pusermos aí um oscilador eletromagnético provido de uma antena para que ele faça irradiar em torno de si um campo; se colocarmos no fundo da sala, ou muito mais longe, a alguns quilômetros, um outro oscilador do mesmo tipo e se os dois osciladores têm a mesma frequência, o segundo entrará em ressonância com o primeiro; enquanto que, se eles não estiverem regulados pela mesma frequência, não entrarão em ressonância: ter-se-á ora ressonância imprecisa, ora ressonância aguda, e a quantidade de energia trocada entre os osciladores vai depender de seu acordo de frequência, e não somente de sua distância e da importância dos órgãos de acoplamento. Vemos aqui processos muito mais refinados de interação entre as partes pela intermediação do todo em que intervêm as trocas seletivas. Sem dúvida, eis porque a noção de campo, no final do século XIX, possuía uma pregnância especial e entrou, quase por efração, no mundo das ciências humanas. Ela foi introduzida pelos filósofos que meditaram sobre as noções antigas de interação, sobre os processos de relação entre a forma e a matéria. É preciso não esquecer que Brentano foi o precursor da teoria da forma, e inspirou os trabalhos de Von Ehrenfels, que publicou Ueber Gestalt Qualitäten, Sobre as Qualidades da Forma. Mais tarde, Köhler, Koffka, e todos os outros teóricos da forma, utilizaram cada vez mais a noção de campo, e se poderia dizer que ela é a noção fundamental no nível do último desenvolvimento que esta doutrina recebeu, com Kurt Lewin, ao fundar uma teoria das trocas psicossociais e sociais com sua interpretação dinâmica de um universo hodológico e topológico. (p. 204-6)
Insuficiência da noção de Boa Forma e da ideia de estabilidade
Ora, a teoria gestaltista, que surgiu da aplicação da noção de campo, recusa tanto a visão empirista quanto a visão idealista da forma que eram a de Aristóteles e a de Platão; e as substitui por um genetismo instantâneo; a percepção é a apreensão de uma configuração do campo perceptivo. Há um campo, o campo perceptivo; os diversos elementos que se encontram aíe o constituem (é a dupla situação característica do campo), estão em interação, como os imãs num campo magnético. Não é somente a percepção, mas também a ação que é a apreensão e a realização de uma configuração; basta ampliar a noção de campo; se existe um campo exterior, um campo fenomenal no processo da percepção, por que não considerar o sujeito como estando nocampo e portanto realidade de campo? Haveria um campo total que se subdividiria em dois subconjuntos, o campo sujeito, o campo objeto; a ação seria a descoberta de uma estrutura, de uma configuração comum ao campo exterior e ao campo interior. Mas, precisamente aqui, aparece a insuficiência axiomáticada teoria da forma: a estrutura é considerada como o resultado de um estado de equilíbrio. Sem esta insuficiência se poderia pensar que a forma arquetípica e a forma hilemórfica estão reunidas na teoria da forma: a forma arquetípica é o todo, Ganzheit; a forma hilemórfica seria o conjunto das estruturas elementares em correlação umas com as outras, já que haveria aí uma organização que atravessa a própria matéria do campo; dar-se-ia conta, ao mesmo tempo, do aspecto elementar, da organização dos subconjuntos, e da organização global do todo. Mas, para dar conta dessa estrutura, que é uma configuração, os teóricos da forma recorreram à noção de equilíbrio. Por que há uma estrutura que é estrutura do todo? Por que esta estrutura do todo é realmente participável por cada uma das partes? Porque ela é a boa forma, a melhor forma. A melhor forma é uma forma que possui dois aspectos: 1. É aquela que envolve o tanto quanto possível elementos e que continua melhor isto que se poderia chamar a tendência a se encaminhar de cada um de seus subconjuntos. 2. É a mais pregnante, ou seja, segundo os teóricos da forma, a mais estável, aquela que não se deixa dissociar, aquela que se impõe. E os teóricos da forma fazem apelo a uma analogia entre o mundo físico e o mundo psíquico, o que os conduz ao postulado do isomorfismo, fundamento de uma teoria do conhecimento; eles mostram que há gêneses das formas, e que existe uma morfologia experimental possível, que estuda a morfogênese no mundo físico; estas formas são, por exemplo, as da repartição de um campo elétrico em torno de um corpocondutor: suponhamos que um corpo condutor (como, por exemplo, o microfone, se ele não estiver ligado a nada) – esteja colocado {208} sobre os calços isolantes; se carregarmos de eletricidade uma vareta de âmbar ou de vidro, e se trouxermos ao corpo condutor a carga elétrica da vareta, ela se repartirá na superfície do condutor, ao seguir as leis conhecidas: assim, o campo será mais forte em torno das pontas. Se trouxermos uma nova quantidade de eletricidade, ela se repartirá ainda da mesma maneira, a quantidade aumenta, mas a forma permanece a mesma; haveria portanto uma certa constância das formas que depende apenas da relação entre todos os elementos e permanece independente de toda condição quantitativa. Von Ehrenfels mostrava que, no interior de uma melodia, altera-se muito mais o aspecto total da melodia ao modificar uma única nota do que ao elevar todas as notas uma oitava ou a abaixá-las todas à oitava inferior. Mas há – do nosso ponto de vista – uma contradição entre a noção de equilíbrio estável, que seria o fundamento da pregnância das formas, e a outra noção, a de boa forma. Parece-nos muito difícil dizer que uma forma é uma boa forma por que ela é a mais provável, e aqui já se desenha uma teoria da informação. “Uma forma é uma boa forma porque ela é amais provável”, o que isto quer dizer? Suponhamos que tomemos esta sala, que a submetamos a um tratamento físico que a sacudisse muito violentamente em todosos sentidos, ao acaso, depois a abandonasse como um sistema fechado e a deixasse a seu próprio e único devir. Ao fim de um século, ter-se-ia certamente obtido um estado de equilíbrio definitivo e muito estável nesse sistema isolado, o que quer dizer que tudo o que está pendurado no teto teria caído ao chão; todas as diferenças de potencial, elétricas,químicas, de gravidade, teriam dado lugar às transformações possíveis: todas as energias que poderiam se atualizar seriam efetivamente atualizadas; teria havido aumento da temperatura, aumento do grau de homogeneidade, e se teria perdido isso que faz com que haja aqui boas formas, isto é, os seres vivos e pensantes que têm motivações e representações variadas e coerentes –fontes de ação –e, mais geralmente, todas as reservas energéticas aqui presentes em todos os domínios: uma pilha, um acumulador carregados seriam descarregados; os condensadores carregados do registrador magnético seriam descarregados e todas as ações químicas que podem se exercer, se exerceriam entre o eletrólito e as armaduras. Dito de outro modo, tudo o que pode advir seria advindo; não haveria mais evolução possível para esta sala; ela estaria inteiramente degradada, degradada como se degrada a energia potencial contida em um relógio cujos pesos estão no alto da gaiola; quando os pesos chegam {210} ao fim do seu curso, um processo irreversível se realizou, e, sem intervenção exterior, o relógio não pode mais funcionar: este estado de não-funcionamento é estável, e ele é o mais provável. Em todos os domínios, o estado mais estável é um estado de morte; é um estado degradado a partir do qual nenhuma transformação é mais possível sem intervenção de uma energia exterior ao sistema degradado. É um estado que se poderia dizer pulverulento e desordenado; ele não contém nenhum germe de devir e não é uma boa forma, não é significativo. Se esta sala fosse tratada como sistema fechado, obter-se-ia um resultado que seria muito análogo ao que seria obtido se fosse tratado do mesmo modo não importa qual outra sala, ou não importa qual outro conjunto de objetos de mesmo volume. Todo tratamento desta espécie,desorganizador, aplicado a um conjunto altamente coerente e altamente valorizado, rico em potenciais, alcançaria resultados semelhantes ao final da perda de forma; não é este caminho para a estabilidade homogênea que dá início à gênese das formas pregnantes. Parece, então, que haveria confusão entre a estabilidade de uma forma para o espírito (seu poder de se impor à atenção e de permanecer na memória), que se poderia chamar a qualidade de uma forma, e, por outro lado, a estabilidade dos estados físicos. Aqui uma insuficiência característica se manifesta na teoria da forma, pois uma evolução convergente não pode explicar uma estabilidade de forma; ela pode explicar apenas uma estabilidade de estado, e não a superioridade de uma forma, que é feita de atividade e de irradiação, de capacidade de iluminar novos domínios. É necessário pensar aqui na forma arquetípica de Platão para evitar este erro, pois a superioridade da boa forma é o que lhe dá sua pregnância; ela é antes a permanência de uma metaestabilidade. (p. 207-9)
Possibilidade de recurso à teoria da informação?
Ou seja, a Psicologia da Forma tem um valor exemplar porque ela procurou reunir a forma aristotélica e a forma platônica para interpretar o processo de interação, mas ela tem uma falha fundamental, pois ela apresenta os processos de degradação como processos de gênese de boa forma. Seria possível, a partir daí, recorrer a uma teoria da informação para enriquecer e corrigir a noção de forma tal como nos é apresentada pela teoria da forma? Seria possível recorrer à teoria de Shannon, de Fischer, de Hartley, de Norbert Weiner? O que há de comum a todos os autores que fundaram a teoria da informação, é que para eles a informação corresponde ao inverso de uma probabilidade; a informação trocada entre dois sistemas, entre um emissor e um receptor, é nula quando oestado do objeto sobre o qual se deve ser informado é totalmente previsível, absolutamente determinado de antemão. Existe informação {210} nula, e não é necessário fazer passar uma mensagem quando se está certo do estado do objeto; pode muito bem não ser enviada mensagem alguma. Se uma mensagem é enviada, se também é buscada, é porque o estado do objeto não é conhecido. (p. 209-10)
Neguentropia na TI: inverso da degradação
A teoria da Informação é o ponto de partida de um conjunto de pesquisas que fundaram a noção de entropia negativa (ou de neguentropia), mostrando que a informação corresponde ao inverso dos processos de degradação e que, no interior de todo esquema, a informação não é definível a partir de um único termo, tal como a fonte, ou tal como o receptor, mas a partir da relação entre fonte e receptor. A questão colocada, à qual responde funcionalmente uma informação, é: qual é o estado da fonte? Poder-se-ia dizer que o receptor se coloca a questão: “Qual é o estado da fonte?” e a informação é isto que fornece ao receptor a resposta. É porque é possível apresentar a quantidade de informação como – log P, P sendo a probabilidade do estado da fonte. Por razões secundárias, mas importantes, se tem tomado os logaritmos na base 2 para definir em Hartleys ou em bits. (p. 210)
Qualidade de informação ou tensão de informação como complemento da teoria da informação: indicação da boa forma
Apesar disso, não sabemos se a teoria da Informação poderia se aplicar diretamente a nosso propósito, isto é, se poderia nos permitir apreender em que uma forma é uma boa forma ou uma forma é melhor que uma outra. Com efeito, na teoria da Informação, considera-se de fato – muito legitimamente no domínio tecnológico em que esta teoria tem um papel funcional a desempenhar –como fundamental a relação entre um emissor e um receptor que têm necessidade de uma correlação, de modo que a informação é isto através do que um certo sistema, o receptor, pode se guiar sobre um outro sistema, o emissor; poder-se-ia dizer que a meta da passagem de informação é estreitar a correlação entre o emissor e o receptor, de aproximar o funcionamento do receptor ao do emissor; tal é o caso, por exemplo, da sincronização; os sinais de sincronização são emitidos para permitir ao receptor de se sincronizar sobre o emissor. Tal esquema convém a uma teoria da aprendizagem, como a que foi desenvolvida por Ombredane e Faverge na obra consagrada ao estudo do trabalho. A teoria da informação é feita para isso, para permitir a correlação entre emissor e receptor nos casos em que é preciso que esta correlação exista; mas, se quisermos transpô-la diretamente para o domínio psicológico e sociológico, ela conteria um paradoxo: quanto mais a correlação entre o emissor e o receptor é estreita, menor é a quantidade de informação. Assim, por exemplo, em uma aprendizagem totalmente realizada, o operador tem necessidade apenas de uma fraquíssima quantidade de informação proveniente do emissor, isto é, do objeto sobre o qual ele trabalha, da {211} máquina que ele conduz. A melhor forma seria então aquela que exige a menor quantidade de informação. Há aí alguma coisa que não parece possível. Não se pode aceitar sem modificação a teoria da informação no domínio psicossocial porque, neste domínio, seria preciso encontrar alguma coisa que permita qualificar a melhor forma como sendo aquela que possui o mais alto grau de informação, e isso não pode ser feito a partir do esquema neguentrópico, da pesquisa probabilística. Ou seja, é preciso fornecer um termo não probabilístico à teoria da informação. Seria possível, talvez, e está aí o ponto de partida da tese pessoal que queremos apresentar agora – falar de uma qualidadede informação, ou de uma tensão de informação. Em uma energia como a energia elétrica, – tem-se em conta um fator de quantidade (Intensidade multiplicada por Tempo), e um fator qualitativo que se relaciona com a diferença de potencial entre os limites da fonte. Do mesmo modo, talvez fosse possível caracterizar a forma, a fim de explicar os processos de interação, não apenas por sua quantidade, mas por sua tensão, e a boa forma seria aquela que corresponde a uma tensão elevada. (p. 210-1)
Analogia com a tensão elétrica de um capacitor
“Tensão” parece evidentemente um termo bastante singular; no entanto, se é permitido continuar a empregar esta analogia entre as ciências da natureza e isto que seria o disparador, o germe estrutural, de uma ciência humana, não seria possível recorrer a uma noção desta espécie? A quantidade de energia que se pode armazenar em um condensador {capacitor} é tanto mais elevada, para uma certa superfície de armaduras, quanto mais próximas elas estão, embora ainda permanecendo isoladas, de outra forma chegamos à descarga disruptiva através da dielétrica. Não haveria algo de análogo na boa forma? Não seria ela a que contém em si um certo campo, ou seja, ao mesmo tempo um isolamento entre dois termos, antitéticos, contraditórios, e entretanto uma correlação? A boa forma não seria aquela que contém um campo de forma elevado, isto é, uma boa distinção,um bom isolamento entre os dois termos ou a pluralidade de termos que a constituem, e, no entanto, entre eles, um campo intenso, ou melhor, um poder de produzir efeitos energéticos caso se introduza aí alguma coisa? O fato de que haja um campo eletrostático importante entre duas armaduras de condensador se traduz pelo fato de que se um corpo é introduzido neste campo, ele se carrega intensamente. Não haveria alguma coisa de semelhante na boa forma? Ela poderia ser, como o pressentiu Platão, uma díade ou então uma pluralidade de díades coordenadas em conjunto, isto é, já uma rede, um esquema, algo de uno e de múltiplo ao mesmo tempo, que contém uma correlação entre termos diferentes, uma correlação rica entre termos diferentes e distintos. Uno e múltiplo, ligação significativa do uno e {212} do múltiplo, isto seria a estrutura da forma. Se fosse assim, poder-se-ia dizer que a boa forma é aquela que está próxima do paradoxo, próxima da contradição, apesar de não ser contraditória em termos lógicos; e a tensão de forma seria definida assim: o fato de se aproximar do paradoxo sem se tornar um paradoxo, da contradição sem se tornar uma contradição. (p. 211-2)
Tensão de forma ~ resistência
Tomada de forma: tensão de informação (germe de estrutura) + energia (meio em estado metaestável)
Isto não pode ser senão uma hipótese, que supõe uma analogia entre ciências da natureza e ciências do homem. Assim, se falaria de uma tensão de forma e, na mesma medida, de uma qualidade de informação, que seria concentração até o limite disruptivo, uma reunião de contrários em unidade, a existência de um campo interior a este esquema de informação, uma certa dimensão que reúne aspectos ou dinâmicas habitualmente não compatíveis entre si. Esta boa forma ou forma rica em potencial seria um complexo tenso, uma pluralidade sistematizada, concentrada; na linguagem, ela se tornaria um organismo semântico. Haveria nela compatibilidade e reverberação interna de um esquema. E também, talvez, fosse possível mensurar o potencial de forma, a tensão de forma, como se mede uma tensão elétrica, ou seja, pela quantidade de obstáculos que ela consegue vencer, a resistência exterior através da qual ela chega a produzir um efeito. Pode-se dizer que um gerador possui nos terminais uma tensão mais elevada que a de um outro gerador se ele pode conseguir fazer passar uma mesma corrente através de uma cadeia de resistências maior, através das resistências cuja soma é mais elevada. Seria esta propriedade que caracterizaria a pregnânciada forma. A pregnância da forma não seria sua estabilidade no sentido da termodinâmica dos estados estáveis e das séries convergentes de transformações, mas sua capacidadede atravessar, de animar e de estruturar um domínio variado, domínios cada vez mais variados e heterogêneos. A diferença entre esta hipótese e a da teoria da informação provém do fato de que uma teoria da tensão de informação supõe aberta a série possíveldos receptores: a tensão de informação é proporcional à capacidade que um esquema tem de ser recebido como informação por receptores não definidos de antemão. Assim, enquanto que uma teoria probabilística pode ser aplicada para medir a quantidade de informação na previsão de uma troca entre emissor e receptor, uma medida da tensão de informação só poderia ser feita por experiência, pelo menos atualmente. Por exemplo, pode-se dizer que o esquema hilemórfico, ou a noção de arquétipo, possuem uma alta tensão de informação porque suscitaram estruturas de significações através de vinte e quatro séculos de culturas muito variadas. A tensão de informação seria a propriedade que possui um esquema de estruturar um domínio, de {213} se propagar através dele, de ordená-lo. Mas a tensão de informação não pode agir sozinha: ela não traz consigo toda a energia capaz de assegurar a transformação; ela traz apenas esta tensão de informação, isto é, um certo arranjo capaz de modular energias muito mais consideráveis, depositadas no domínio que vai receber a forma, que vai tomar uma estrutura. Só pode haver tomada de forma se duas condições se encontram reunidas: uma tensão de informação, trazida por um germe estrutural, e uma energia contida pelo meio que toma forma: o meio – que corresponde à antiga matéria – deve estar em estado metaestável tenso, como uma solução supersaturada ou em superfusão, que espera um germe cristalino para poder passar ao estado estável ao liberar a energia que contém. (p. 212-3)
Tomada de forma como modulação: forma como sinal de controle do relé. Gereralização: operação transdutiva: avanço gradual da tomada de forma que avança de uma região já estruturada para uma região metaestável.
Este tipo particular de relação que existe entre a tensão de informação do germe estrutural e o domínio informável, metaestável, que contém uma energia potencial, faz da operação de tomada de forma uma modulação: a forma é comparável ao sinal que comanda um relé sem adicionar energia ao trabalho do efetor. Entretanto, estruturas comparáveis aos moduladores técnicos são muito mais raras que os domínios em que se evidenciam processos de tomada de forma. Para que a hipótese que fizemos possa ser aplicada a todos os casos, convém então indicar segundo qual processo pode se desencadear uma tomada de forma por modulação em um domínio que não está contido em um modulador. Supomos que a operação de modulação pode se desencadear em uma microestrutura que avança progressivamente através do domínio que toma forma, constituindo o limite movente entre a parte informada (portanto estável) e a parte ainda não informada (portanto ainda metaestável) do domínio. No maior número de casos de tomada de forma, esta operação seria transdutiva, isto é, avança gradualmente a partir da região que já recebeu a forma em direção à que permanece metaestável; encontraríamos assim a assimetria motriz do par hilemórfico, com a matéria capaz de tendência, e o poder arquetípico da forma que preexiste à tomada de forma. (p. 213)
Aplicação para o caso da ontogênese
No domínio da ontogênese somática, estudos como os de Arnold Gesell sobre o crescimento e a embriologia do comportamento parecem poder ser axiomatizados por meio de noções tais como as que acabo de propor comohipótese. Com efeito, {214} para Arnold Gesell, a ontogênese do comportamento, desde a concepção até a morte, é uma evolução que marca a sucessão de um certo número de etapas, ora de adaptação aos mundos exteriores, ora de desdiferenciação, ao menos aparente, dos ajustes adaptativos e de busca de novos ajustes. As crises pelas quais estes novos ajustes adaptativos são buscados se caracterizam pelo que Gesell chama de flutuações autorreguladoras. Os estudos que ele fez sobre o regime de auto-alimentação das crianças lhe mostraram que uma criança é capaz de encontrar por si mesma as estruturas de adaptação pelo feeding behavior (comportamento alimentar) e pelo regime de repouso e vigília, quer seja deixando-a agir por si mesma, seja impondo-lhe limites definidos. Se a deixarmos agir livremente durante um certo tempo, ela se coloca no regime, por exemplo, de sete refeições por dia e dorme durante um certo tempo. Depois, quando a maturação engendrou novas tendências e novas demandas, intervém um período de desdiferenciação e de desadaptação. A criança desperta a qualquer momento e demanda, por seus gritos, o alimento; de repente, ela reestrutura sua atividade, mas sobre a base de seis refeições por dia. Ao fim de um certo tempo, mais uma vez se dá uma fase de desdiferenciação, depois uma ordem de cinco refeições, e assim sucessivamente. O esquema é claro: alternância de adaptações ao mundo exterior e de desadaptações, as desadaptações marcam um momento de busca de uma nova estrutura, quando o regime de adaptação já constituído não corresponde mais às tendências internas, e ao nível de maturação do organismo (maturação do sistema nervoso, do sistema digestivo, do sistema motor). Para os autores americanos, Gesell e Carmichael encontraram uma generalização dessa ideia na noção de ontogênese do comportamento, que consiste numa sucessão de movimentos de adaptação seguidos de desadaptação e de desdiferenciação. Os “padrões”, isto é, os esquemas de uma primeira adaptação, parecem perdidos no momento em que se chega à desdiferenciação, mas, de fato, eles se encontram reincorporados na nova adaptação. Assim, no estudo disto que ele chama de “prone progression in human infant”, isto é, o fato de avançar em posição de pronação, falando da alimentação humana entre zero e um ano, Gesell descobre quatro ciclos sucessivos:a reptação, depois o engatinhar de joelhos, depois o caminhar de quatro em extensão, e enfim o caminhar de pé. Ora, os padrões, que são adquiridos na reptação, chegam a uma espécie de perfeição ao fim deste período, depois, bruscamente, quando a maturaçãoé suficiente, se produz uma desadaptação, a criança rasteja com dificuldade; ela rasteja com dificuldade e se ergue sobre os braços, pondo-se de joelhos; ela não avança mais, {215} ela está desadaptada. Então ela busca um novo tipo de adaptação, e no interior deste novo tipo de adaptação, são reutilizadas as relações ipsilaterais, contralaterais, de inibição, de facilitação que existiam na reptação; a reptação foi perdida, mas o conteúdo da reptação não está totalmente perdido, ele é reincorporado. Existe, portanto, uma espécie de dialética nessa aprendizagem, aprendizagem e maturação desenvolvendo-se conjuntamente, de modo que, na posição ereta, o que era uma ligação ipsilateral ou contralateral na reptação se torna movimentos alternados dos braços e das pernas que permitem o equilíbrio harmonioso. É possível interpretar a ontogênese do comportamento como feita da sucessão de momentos de plena adaptação ao mundo exterior altamente formalizados, bem individualizados –e momentos que se caracterizam, ao contrário, pela presença de uma tensão (que pode aparecer para o observador estritamente behaviorista como uma desadaptação e, por consequência, uma regressão), mas que, narealidade, mostram que o organismo está em vias de constituir em si o que se poderia chamar de sistemas de potenciais, a partir dos quais esse domínio de esquemas elementares e de algum modo liquefeitos, que constituem um campo metaestável como uma solução em superfusão, poderá se estruturar muito rapidamente por sua própria energia em torno de um tema de organização que apresente uma tensão de forma mais alta. (p. 213-5)
Transdução na ontogênese
Os autores que acabo de citar colocam essas pulsações da ontogênese do comportamento em paralelo com as descobertas dos geneticistas, que representam as estruturas dos genes como agenciamentos cruzados entre cadeias de moléculas; eles querem encontrar uma base muito mais geral para esta noção de correlação entre cadeias; para eles, aliás, a maturação do organismo se efetuaria de acordo com um certo gradiente, segundo um eixo céfalo-caudal e próximo-distal, e poder-se-ia considerar a maturação do organismo como se operando a partir de um polo, o polo cefálico, e passando através do organismo por ondas sucessivas (como se houvesse germes estruturais contidos no eixo cefálico), se propagando transdutivamente através do corpo inteiro. A própria maturação orgânica, por consequência, –que é a condição dessa alternância entre adaptação e evolução, se realizaria segundo um processo transdutivo no qual haveria propagação de uma tomada de forma, extensão de uma organização a partir de um reservatório de formas ou de um lugar de nascimento das formas no organismo.Em sendo assim, seriamos obrigados a dizer que, em uma semelhante doutrina, a forma permanece arquetípica num certo sentido, por sua anterioridade e por sua não-imanência inicial ao campo estruturável que é sua {216} matéria; entretanto, esta forma só pode estruturar o campo que esteja em estado metaestável e pode passar ao estado estável quando ele recebe a forma: na operação transdutiva de modulação,que é verdadeiramente a operação hilemórfica, não é qualquer forma que pode desencadear a atualização da energia potencial de qualquer campo metaestável: a tensão de forma de um esquema depende do campo ao qual ela se aplica. Um líquido supersaturado ou superfundido não pode cristalizar a partir de qualquer germe: é preciso que o germe cristalino seja do mesmo sistema cristalino que o corpo cristalizável: há, no entanto, nos acoplamentos possíveis de forma e de matéria uma certa liberdade, mas uma liberdade limitada. Assim, no curso de uma ontogênese, os acréscimos de germes estruturais devido às circunstâncias exteriores podem orientar em certa medida a estruturação que sobrevém após uma desdiferenciação. Mas um germe estrutural que se afasta demasiadamente das características do campo estruturável não possui mais nenhuma tensão de informação em relação a este campo. (p. 215-6)
Portanto, em semelhante doutrina, encontra-se a ideia segundo a qual não se pode explicar a gênese de um ser vivo sem fazer apelo a dois princípios muito distintos: uma origem das formas –aqui, o eixo céfalo-caudal –e um campo, um domínio que recebe estas formas e através do qual, a partir do polo da origem das formas, se produz a extensão progressiva. Seria preciso aproximar isto da teoria dos organizadores biológicos {Dalcq: O Ovo e seu dinamismo organizador}? – Talvez; em todo caso, deve-se reter a ideia segundo a qual uma desdiferenciação do campo (campo de comportamento ou campo corporal) é necessária para que uma nova estruturação possa se transmitir nele. Chegaríamos, portanto, pelo estudo do indivíduo, a um novo princípio que levaria em conta os dois aspectos da forma evocados agora há pouco: o aspecto arquetípico, o aspecto hilemórfico. É preciso um campo que exteriormente se desdiferencie porque, interiormente e essencialmente, ele se potencializa; este campo seria talvez o correspondente da matéria aristotélica, que pode receber uma forma. O campo que pode receber uma forma é o sistema no qual as energias potenciais que se acumulam constituem uma metaestabilidade favorável às transformações{7:}. Uma conduta que se {217} desadapta, depois se desdiferencia, é um domínio no qual há incompatibilidade e tensão: é um domínio cujo estado torna-se metaestável. Uma adaptação que não corresponde mais ao mundo exterior, e cuja inadequação em relação ao meio reverbera no organismo, constitui uma metaestabilidade que corresponde a um problema a ser resolvido: há impossibilidade para o ser continuar a viver sem mudar de estado, de regime estrutural e funcional. Essa metaestabilidade vital é análoga à supersaturação e à superfusão das substâncias físicas. Esse estado supertenso, e por consequência metaestável, é propício a uma tomada de forma transdutiva a partir de um germe estrutural; germe que, ao estar presente, modula a região mais próxima do campo; a tomada de forma se propaga e percorre todo o campo. Nesta concepção, a totalidade que era simultânea e global, coerente consigo mesma e ligada a si mesma desde a origem, na teoria da forma, que faz do todo uma estrutura orgânica de totalidade (Goldstein evoca o Sphairos parmenidiano), torna-se o domínio metaestável que é capaz de cristalizar desde que se lhe forneça um germe formal. **O arquétipo seria este germe formal que só pode desencadear uma tomada de forma num certo momento de supersaturação e por consequência de maturação de um organismo. Eis talvez como se poderia aplicar à ontogênese do comportamento, e à maturação dos sistemas orgânicos, a noção de forma arquetípica e de relação hilemórfica, graças a uma teoria energética da forma que se aplica aos campos de metaestabilidade. (p. 216-7)
Potencial (real) x virtual (possível)
7: Este campo não é global e simultâneo em relação a si mesmo senão como campo, antes da tomada de forma; a ausência interior de fronteiras traduz o aumento das energias potenciais e a homogeneidade por desdiferenciação que permitirão à tomada de forma avançar transdutivamente: a matéria é campo metaestável antes da tomada de forma. Mas a tomada de forma é precisamente uma passagem da metaestabilidade à estabilidade: a matéria informada se diferencia e não é mais um campo; ela perde {217} sua ressonância interna. A teoria da forma atribui à totalidade as características de um campo e os do organismo ao mesmo tempo; acontece que, o campo existe antes da tomada de forma, e o organismo depois. A tomada de forma, considerada como operação de modulação transdutivamente propagada, faz passar o real do estado metaestável ao estado estável e substitui uma configuração de campo por uma configuração de organismo. Como corolário, a teoria energética de tomada de forma que apresentamos não emprega a noção de virtualidade que é suposta pelo conceito de boa forma; o potencial, concebido como energia potencial, é real, pois ele expressa a realidade de um estado metaestável, e sua situação energética. A potencialidade não é uma simples possibilidade; ela não se reduz a uma virtualidade, que é menos que o ser e a existência. (p. 216-7)
Gênese do pensamento: princípio analógico na teoria energética da tomada de forma
Falta espaço para dizer como esta doutrina poderia se aplicar também à gênese do pensamento. Entretanto, se dirá o seguinte: poder-se-ia considerar a aquisição da empeiria, a reduplicação das experiências, como a atividade que faz passar o domínio do conteúdo mental de um estado não saturado a um estado supersaturado. A experiência relativa a um mesmo objeto acrescenta e sobrepõe aspectos parcialmente contraditórios, produzindo um estado metaestável do saber relativo ao objeto. Neste momento, caso apareça um germe estrutural sob a forma de uma dimensão nova, {218} teremos uma estruturação que se estende sobre esse campo metaestável que é a experiência; há operação de tomada de forma. Por exemplo, a metade do campo esquerdo e a metade do campo direito na visão levariam à diplopia caso o conteúdo direto das mensagens que entram por cada uma das retinas subsista na visão do sujeito. Incompatibilidade e supersaturação seriam evitadas caso descobríssemos a dimensão de afastamento dos planos em profundidade. Essa descoberta de estrutura não se limita a conservar tudo o que entra pelo olho esquerdo e tudo o que entra pelo olho direito: há, além do mais, utilização disto que se chama disparação binocular, isto é, do grau de não-coincidência das mensagens esquerdas e direitas para perceber a superposição dos planos; uma teoria da percepção (teoria da relação entre as diferentes mensagens sensoriais) seria possível a partir desta noção de estruturação dos campos supersaturados. Seria, portanto,a indicação de uma nova via de pesquisas para a psicologia individual. O princípio analógico que está na origem desta teoria energética da tomada de forma é extraído do estudo físico da cristalização, que opera a partir de um germe cristalino em um domínio em que haja seja superfusão, seja supersaturação, condições quase equivalentes e que tornam possível a formação de um cristal artificial a partir de um germe cristalino. Uma concepção energética da tomada de forma pode reunir os esquemas de pensamento comuns à teoria da informação e à cibernética. Com efeito, a ação do germe estrutural sobre o campo {219} estruturável, em estado metaestável, que contém uma energia potencial, é uma modulação. O germe arquetípico pode ser muito pequeno e não acrescentar energia,ou quase nenhuma; basta que ele possua um campo modulador muito fraco. Mas este campo é comparável à corrente fraca que é trazida sobre a gradede um tríodo, e esta energia tão fraca, com o campo mínimo que ela cria entre o cátodo e a grade de comando, é capaz de contrabalançar o campo forte que existe entre o ânodo e o cátodo. Esse campo mínimo – alguns volts – chega a contrabalançar o campo de sentido contrário, muito maior (de 100 a 300 volts), que existe entre cátodo e ânodo; e é graças ao fato que este campo criado pela grade é mais ou menos o antagonista do outro que ele é capaz de modular a energia potencial da fonte de tensão ânodo-cátodo e, por consequência, condicionar os efeitos consideráveis no efetor exterior. Não se realizaria um exercício parecido de causalidade condicionante quando um germe estrutural, que chega a um meio metaestável, isto é, rico em energia potencial, consegue propagar sua estrutura no interior deste campo? Ao invés de receber uma forma arquetípica que domina a totalidade, eirradia para além de si, como o arquétipo platônico, não se poderia colocar a possibilidade de uma propagação transdutiva da tomada de forma, que avança etapa por etapa, no interior do campo? Bastaria, para isso, supor que o germe arquetípico, após ter modulado uma zona imediatamente em contato consigo, utilize esta zona imediatamente próxima como um novo germe arquetípico para ir mais longe. Haveria mudança local progressiva de estatuto ontológico do meio: o germe arquetípico primitivo produziria em tornode si uma primeira zona de cristalização; ele criaria assim um modulador um pouco maior, em seguida este modulador um pouco maior modularia em torno dele, e se ampliaria cada vez mais, o limite permanecendo modulador. É assim que avança um cristal, quandose produz um cristal artificial; a partir de um germe cristalino microscópico, pode-se produzir um monocristal de vários decímetros cúbicos. A atividade do pensamento não possuiria um processo comparável, mutatis mutandis? Poder-se-ia investigar, em particular, o fundamento do poder de descoberta da analogia: o fato de ter resolvido, por meio de determinado esquema mental, os problemas de um campo limitado de nosso conteúdo de pensamento, nos permitiria passar transdutivamente a um outro elemento e “reformar nosso entendimento”. Eis, ao menos, um esquema proposto para interpretar um dos caminhos do pensamento, que não se deixa reconduzir nem à indução pura nem à dedução pura. (p. 217-9)
Teoria integralista (x inatismo realista, empirismo nominalista) e teoria da tomada de forma (x dedução arquetípica, indução hilemórfica)
{9}: Esta teoria {integralista} se distinguiria do inatismo realista (ligado à teoria arquetípica) e do empirismo nominalista (ligado à teoria hilemórfica): o progresso do conhecimento seria então uma formalização, mas não um empobrecimento nem um afastamento progressivo que abandona o concreto sensorial; a formalização seria uma tomada de forma, consecutiva a uma resolução de problema: ela marcaria a passagem de um estado metaestável a um estado estável do conteúdo da representação. A descoberta de uma dimensão organizadora do saber utiliza como índice positivo de organização estrutural isto que, no conteúdo em estado metaestável, era precisamente o fundamento da incompatibilidade: no caso da percepção binocular, é a disparação das imagens monoculares que as tornam incompatíveis. Acontece que, é precisamente este grau de disparação que é tomado como índice positivo da distância relativa dos planos na percepção tridimensional. Entretanto, o saber avança ao positivar as incompatibilidades, fazendo delas as bases e os critérios de um sistema mais elevado do saber. A teoria dedutiva do saber é tão insuficiente quanto a teoria indutiva; a teoria indutiva descreve as condições de campo metaestável que precedem a tomada de forma; mas ela esquece o germe estrutural, e quer dar conta da formalização pela abstração – que empobrece o conteúdo do campo sem positivar as incompatibilidades, já que as elimina: portanto ela se afasta do real. A teoria dedutiva descreve o jogo do germe estrutural, mas não pode mostrar sua fecundidade, porque ela o considera como um arquétipo e não como um germe. A teoria da tomada de forma por positivação das incompatibilidades da experiência deveria permitir retomar o problema do esquematismo sobre novas bases, e dar talvez um sentido novo ao relativismo, ao mesmo tempo em que forneceria uma base para a interpretação de todos os processos psíquicos de gênese e de invenção. (p. 218)
Realidade social: estado pré-revolucionário como situação metaestável
Deixando de lado o ser individual, pode-se se perguntar se a realidade social nãocontém também potenciais. Geralmente os {220} fenômenos sociais e psicossociais são explicados por processos de interação. Mas, como o observa Norbert Weiner, é muito difícil fazer intervir as teorias probabilísticas no domínio social. Ele utilizou uma comparação que não posso desenvolver completamente, e que pode ser resumida assim: fazer intervir uma amostragem mais vasta no estudo probabilístico não é melhor que aumentar a abertura de uma lente, quando a precisão desta lente não é superior ao comprimento de onda da luz. Não se obtém um poder de resolução superior aumentando a abertura de uma lente se a lente não é suficientemente perfeita. Norbert Weiner quer dizer que as variações aleatórias, nas amostras do domínio social humano, não permitem uma verdadeira previsibilidade nem uma verdadeira explicação, pois quanto mais se estende as amostras, mais elas são heterogêneas. O autor chega à ideia de que as teorias probabilísticas são fracas no domínio sociológico e psicossocial. Com uma teoria energética da tomada de forma teríamos um método não-probabilístico, não concedendo nenhum privilégio às configurações estáveis. Consideraremos que o que há de mais importante a ser explicado no domínio psicossocial é o que se produz quando se trata de estados metaestáveis: é a tomada de forma realizada no campo metaestável que cria as configurações. Ora, estes estados metaestáveis existem; sei bem que, em geral, não são estados de laboratório, são estados quentes, como diria Moreno, e sobre os quais não se pode experimentar demoradamente. Neste caso, não se pode organizar os psicodramas ou sociodramas, e também não se pode mais traçar os sociogramas que lhes correspondem. Mas um estado pré-revolucionário, aí está o que parece propriamente o tipo do estado psicossocial a ser estudado com a hipótese que apresentamos aqui; um estado pré-revolucionário, um estado de supersaturação, é aquele no qual um acontecimento está pronto para se produzir, onde uma estrutura está pronta a brotar; basta que o germe estrutural apareça, e às vezes o acaso pode produzir o equivalente do germe estrutural. Em um notável estudo de M. P. Auger é dito que o germe cristalino pode ser substituído em certos casos por encontros ao acaso, por uma correlação ao acaso entre as moléculas; talvez, do mesmo modo, em certos estados pré-revolucionários, a resolução possa advir tanto pelo fato de que uma ideia sobrevenha de outro lugar, –e imediatamente advém uma estrutura que passa {221} por toda parte, –quanto talvez por um encontro fortuito, ainda que seja muito difícil admitir que o acaso tenha valor de criação de boa forma. (p. 219-21)
Ciência humana fundada em uma energética humana: transformações entre estados metaestáveis
Em todo caso, chegaríamos à ideia segundo a qual uma ciência humana deve ser fundada sobre uma energética humana, e não apenas sobre uma morfologia; uma morfologia é muito importante, mas uma energética é necessária; seria preciso se perguntar por que as sociedades se transformam, por que os grupos se modificam em função das condições de metaestabilidade. Ora, vemos claramente que o que há de mais importante na vida dos grupos sociais não é apenas o fato de que eles sejam estáveis, mas que em certos momentos eles não podem conservar sua estrutura: eles se tornam incompatíveis em relação a si mesmos, eles se desdiferenciam e se supersaturam; assim como a criança que não pode mais permanecer em um estado de adaptação, estes grupos se desadaptam. (p. 221)
Exemplo da colonização. Energética que leve em conta os processos de tomada de forma.
Na colonização, por exemplo, durante um certo tempo, existe coabitação possível entre colonos e colonizados, em seguida, de repente, isto não é mais possível por que os potenciais nasceram, e é preciso que uma nova estrutura brote. E é preciso uma verdadeira estrutura, isto é, que saia verdadeiramente de uma invenção, uma emergência de forma para que este estado se cristalize; senão permanece-se em um estado de desadaptação, de desdiferenciação, comparável aodesajuste de Gesell e de Carmichael. Vemos aqui, consequentemente, uma perspectiva para criar uma ciência humana. Em um certo sentido, seria uma energética, mas seria uma energética que levaria em conta os processos de tomada de forma, e que tentariam reunir em um único princípio o aspecto arquetípico, com a noção de germe estrutural, e o aspecto de relação entre matéria e forma. (p. 221)
As noções de campo e domínio na ciência humana
Concluindo, na unidade da operação de tomada de forma transdutiva do campo metaestável, propusemos que se distinga, em ciência humana, o campo do domínio. Reservaríamos a noção de campo ao que existe no interior do arquétipo, isto é, a estas estruturas quase paradoxais que serviram de germe para o indivíduo, como dissemos há pouco; é a tensão de forma que seria um campo, como existe um campo entre as duas armações de um condensador carregado. Mas chamaríamos domínio o conjunto da realidade que pode receber uma estruturação, que pode tomar forma por operação transdutiva ou por uma outra operação (pois a operação transdutiva não é, talvez, a única que existe; há também processos disruptivos, que não são {222} estruturantes, mas apenas destrutivos). O domínio de metaestabilidade seria modulado pelo campo de forma. (p. 221-2)
Desadaptação e degradação
A segunda distinção, que se prolonga em princípio axiológico, consiste em opor desadaptação e degradação: a desadaptação no interior de um domínio, a incompatibilidade das configurações no interior do domínio, a desdiferenciaçãointerior, não devem ser assimiladas a uma degradação; elas são a condição necessária de uma tomada de forma; elas marcam, com efeito, a gênese de uma energia potencial que permitirá a transdução, isto é, o fato de que a forma avançará no interior deste domínio. Se esta desadaptação não se produz nunca, se não há esta supersaturação, ou melhor, uma reverberaçãointerior que torna os subconjuntos homogêneos uns em relação aos outros, –como a agitação térmica que faz com que todas as moléculas se encontrem cada vez mais frequentemente em um espaço –a transdução não é possível. Dito de outro modo, consideraríamoso processo de desdiferenciação no interior de um corpo social, ou no interior de um indivíduo que entre em um período de crise, como os alquimistas dos tempos passados considerariam a Liquefactio ou a Nigrefactio, isto é, o primeiro momento do Opus Magnum, ao qual eles submeteriam as matérias colocadas na retorta: o Opus Magnum começava por dissolver tudo no mercúrio ou reduzir tudo ao estado de carvão – onde mais nada se distingue, as substâncias perdendo seu limite e sua individualidade, seu isolamento;após esta crise e este sacrifício vem uma diferenciação nova; é o Albefactio, em seguida Cauda pavonis, que faz sair os objetos da noite confusa, como a aurora que os distingue por sua cor. Jung descobre, na aspiração dos Alquimistas, a tradução da operação de individuação, e de todas as formas de sacrifício, que supõem o retorno a um estado comparável àquele do nascimento, ou melhor, o retorno a um estado ricamente potencializado, ainda não determinado, domínio para a propagação nova da Vida. (p. 222)
Debate
Sobre a possibilidade de uma teoria unitária
G.BOULIGAND – Admirei bastante a construção de Sr. Simondon. Gostaria de colocar uma questão: não se está sobre o ponto de chegar a uma teoria unitária no domínio psicossocial? Isso poderia parecer paradoxal, em comparação ao estado atual das teorias físicas e aos esforços de seus autores para edificar uma teoria unitária cósmica. Isso poderia ir longe, quem sabe? Levando-nos talvez a prever que nos próximos cinco séculos, numa galáxia qualquer vão se formar as novae ou as supernovae. (p. 223)
G.SIMONDON – Sim, compreendo. Quanto ao segundo ponto haveria talvez uma razão explicativa a isso que você diz, a esta diferença entre o devir da física e o devir das ciências humanas que procuram ser uma ciência humana: é que temos uma unidade, no domínio do homem, que vem disto que ele é uma espécie, enquanto que, no domínio físico, não se tem esta limitação específica: há talvez vários domínios e não um só campo. (p. 224)
Ausência da noção de energia potencial em Platão
SIMONDON – O que não me parece estar presente na doutrina de Platão é a noção de energia potencial, o potencial de uma maneira geral, e talvez encontremos aí um certo desprezo, um desconhecimento das origens do devir. É possível fazer uma teoria do homem sem considerá-lo como um ser, não somente que devém, isto é, que nasce e que morre, que se degrada, mas como um ser do qual uma parte da essência é devir, isto é, um ser para alguma coisa? É sobretudo a noção de tendência que falta. (p. 225)
P.M.SCHUHL – Se procurarmos bem, poderemos encontrar no Filebo textos que fazem alusão a um devir que conduz para o ser: génésis eis ousian. (p. 225)
J.WAHL – A reflexão que poderia fazer vai no mesmo sentido que a do Sr. Schuhl, isto é,que eu me permitiria lembrar do papel do devir no Filebo, ao qual se refere Sr. Schuhl: pois há aí a ideia de essências do devir, a ideia de uma gégénèménè ousia, ou seja, alguma coisa que se chama uma geração para a essência. Agora, você tem razão, não é ao homem que Platão atribuiu a tendência para a essência. No entanto, o maior crítico da teoria das Ideias é Platão, ao menos da Ideia enquanto Arquétipo. É Platão que colocou o maior número de questões ao tema da Ideia. (p. 225)
Crítica à ideia de Boa Forma: só apareceria a posteriori
{J. Wahl} Admirei muito suas obras e sua exposição, mas, de uma maneira análoga àquela que foi esboçada agora a pouco, eu me pergunto se não há um perigo de transposição em alguma coisa que é verbal; é o perigo, de uma maneira geral, que se vê do outro lado do Atlântico que frequentemente se quer presente; os esquemas, interessantes, mas, no fundo, talvez o concreto teria sido mais interessante. Eu me pergunto se, na ideia de boa forma, não há um mito; inicialmente, não podemos conhecer a boa Forma senão depois que ela foi a boa Forma, isto é, logo após. Além do mais, também para esses estados pré-revolucionários, é muito difícil estudá-los no momento por que temos outra coisa para fazer; então só os estudaremos depois, e os interpretaremos de uma maneira diferente. Eu não sei qual relação você colocaria entre eles e a Boa Forma e a Má Forma; é muito difícil, eu vejo aí um tipo de perigo, na ideia mesma de Boa Forma. No fundo, é a ideia do Filebo, aliás, uma ideia platônica, mas que talvez demande uma discussão: o que quer dizer a palavra Bom na ideia de Boa Forma, primeiro para os Gestaltistas e depois para você mesmo? (p. 225)
G.SIMONDON –Eu a apresentei {a ideia de Boa Forma} atribuindo-a aos Gestaltistas. Eu disse que não se podia falar de uma Boa Forma por que esta Boa Forma seria bastante totalitária. Minha intenção era precisamente trazer uma crítica da noção de Boa Forma. Há bastante otimismo na noção de Boa Forma; ela é bastante leibniziana numa certa medida. Eu queria dizer que havia sempre risco e perigo, que o possível permanecia aberto, e se falei da época pré-revolucionária é por que uma tensão pode engendrar o melhor como o pior, é um questionamento. É portanto, numa certa medida, uma teoria dramática do devir do ser que eu quis apresentar; não é de modo algum uma teoria otimista como a que se encontra nos Gestaltistas onde tudo é o melhor no melhor dos campos, para parafrasear uma expressão que justamente seria de Leibniz: a Boa Forma é perfeita e é boa para todo mundo, é boa para todos os pontos de vista e para todos os elementos. Isso eu não o creio. E pode haver aí concorrência entre diferentes Formas. Do mesmo modo que um germe cristalino produzido pode fazer cristalizar um campo metaestável de uma maneira ou de outra (e pode haver aí várias espécies de germes cristalinos capazes de provocar a cristalização) –tudo depende daquele que cai, e aí existe um fenômeno de acaso –, do mesmo modo, a forma que surge de um estado tenso não é necessariamente a melhor possível e nunca sabemos a qual seria a melhor possível (p. 226)
Sobre a impossibilidade de uma antropologia: estudo ontológico do humano. Psico-sociologia pura: correlações.
G.SIMONDON – Eu não conheço o pensamento de Herbart. Quanto à objeção que consiste em dizer que eu não começo por um estudo do ser, creio que isto é impossível, e eu tentei dizê-lo no início. Com efeito, quando se estuda o homem, permanece-se sempre no nível das correlações por que não há redução possível do ser individual a um subconjunto que seria verdadeiramente um elemento, e tampouco há grupo de grupos. Nem a totalidade, nem o indivisível são possíveis no homem. Uma ontologia, no caso do homem, seria uma antropologia, porém eu não penso que uma antropologia seja possível; este é o postulado. (p. 227)
G.SIMONDON – É que estamos no meio termo. Estamos no nível das correlações; é uma psico-sociologia pura, poderíamos dizer. Tentei dizer que não havia psicologia pura possível, mas que se estava sempre, mesmo quando se estuda o indivíduo, e mesmo quando se estuda o grupo, no nível de uma psico-sociologia, isto é, de um estudo dos domínios. (p. 227)
Método analógico ~ ontologia da operação transdutiva
G.SIMONDON – Creio legitimar a analogia, creio legitimar o paradigmatismo, e creio também legitimar o emprego de uma analogia pela noção de transdução. Há, de alguma maneira, identidade entre o método que eu emprego, que é um método analógico, e a ontologia que eu suponho, que é uma ontologia da operação transdutiva na tomada de forma. Se a operação transdutiva da tomada de forma não existe, a analogia é um procedimento lógico inválido; é um postulado. Aqui o postulado é ao mesmo tempo ontológico e metodológico. (p. 228)
O elo mais fraco explica a resistência do conjunto
(p. 228-9)
Humano e Natureza. Dificuldade: axiomatização das ciências humanas a partir das ciências da natureza
P.RICOEUR – Gostaria de assinalar uma dificuldade prejudicial; não quero dizer que não haja resposta a esta dificuldade, mas gostaria de ouvi-lo; tal é a dificuldade: é possível tentar uma axiomatização das ciências humanas a partir de um domínio que não pertence ele mesmo às ciências humanas? Mais precisamente, o que me parece anterior às ciências humanas não é a natureza, mas a totalidade Homem + Natureza; é {230} possível, a partir de uma estrutura de pensamento emprestada à natureza, axiomatizar a totalidade Homem + Natureza? Parece-me que estamos necessariamente condenados a algo como um paralogismo todas as vezes que tentamos explicar a totalidade pelas leis de uma de suas partes.* Assim, desde que você explicou a origem do arquétipo platônico pelo modelo da impressão sobre o metal, você foi obrigado a dizer que a relação da cunha com o metal era o modelo da relação da Ideia com o sensível; nesta proposição, a própria noção de modelo não tem, ela mesma, por modelo, a relação do molde das moedas com o metal; ela pertence de direito ao universo do discurso e se constitui a partirda relação do sentido com o aparecer. Como você pode, sem paralogismo, constituir uma estrutura da linguagem a partir das coisas das quais trata a linguagem? Como uma relação entre coisas, a cunha e o metal, pode servir de modelo para o sentido do discurso? Se pretendemos verdadeiramente axiomatizar as ciências do homem, me parece mais coerente fazê-lo a partir do discurso o mais significante, aquele que tende para a totalidade, e não a partir de um setor do objeto deste discurso. Há, aliás, outras possibilidades de axiomatização além desta que procederia de cima para baixo a partir do discurso total.... Ao contrário, não vejo como se pode constituir o universo do discurso a partir da região natureza, que é também alguma coisa no discurso. (p. 229-30)
G.SIMONDON – Isso não. Se admitimos que a região natureza é uma parte do discurso, não o podemos. Mas há postulado. (p. 230)
P.RICOEUR – O discurso não pode ser uma parte de um de seus setores de objetos; em linguagem estóica: o que se diz não é corpo; só posso compreender o que se diz por meio disto que é dito. (p. 230)
G.SIMONDON – Mas como poderíamos admitir que a natureza é uma parte do discurso? É isso que é o postulado prévio na sua argumentação, e isso eu o rejeitaria absolutamente (p. 230)
P.RICOEUR – Eu não estou dizendo que a natureza seja uma parte do discurso, mas que se trata da natureza no discurso. Pelo contrário, vejo em sua posição o perigo de um objetivismo; supõe-se que a consciência faz parte de um campo total e que as significações daquele que fala fazem elas mesmas parte do conjunto das coisas. Daí o {231} caráter metafórico de todas as suas transposições do plano da natureza para o plano das significações humanas. (p. 230-1)
G.SIMONDON – Sim, mas atenção! Não é uma metáfora: você fala de metáfora por que parte de uma concepção das significações que não integra a noção de relação transdutiva. Mas, aqui na doutrina que apresentei não pode ser um paralogismo, por que não é um “logismo”. Dito de outro modo, não há um universo do discurso, e também não há uma significação de todas as significações. É muito certo que uma doutrina desta espécie deve se apresentar como totalidade e que ela não pode se pensar com uma teoria da significação que seria emprestada a outras doutrinas. Ela apareceria então como um paralogismo, e não acredito que ela seja um, dentro de sua própria lógica, que ela traz consigo. (p. 231)
P.RICOEUR – Não haverá nenhum elemento metafórico em sua explicação se você estiver seguro que o conjunto das significações faladas faz parte do domínio que você axiomatiza. Porém, é isso que é preciso demonstrar previamente. Acontece que não podemos demonstrá-lo senão falando; precisamos então pressupor a palavra e as leis próprias da significação (p. 231)
G.SIMONDON – Não... (p. 231)
P.RICOEUR – Eu posso remontar das leis da palavra até a percepção, até ao insignificante, mas não posso fazer o processo inverso... (p. 231)
G.SIMONDON – Não: há aí uma teoria da palavra que ultrapassa muito o que se poderia admitir; é conceder todo valor à palavra. Há uma teoria da natureza nisto que tentei apresentar que não poderia admitir semelhante teoria da significação como contida na palavra. Não há a Palavra, mas há as palavras, há uma multidão de tipos de palavras: há a Significação, sim, mas não a Palavra. (p. 231)
Preferência por uma filosofia da natureza (na leitura da teoria da informação)
J.HYPPOLITE – Eu não voltarei sobre o que Ricoeur acaba de dizer, mas eu me pergunto se você extraiu, do ponto de vista da axiomática das ciências humanas, tudo o que você poderia ter extraído da teoria da informação ou da teoria dos jogos. Você {232} considerou, sobretudo, a ciência física, e nome ou axiomática das ciências humanas o que é antes uma filosofia da natureza.
Você deixou de lado a discussão da teoria da informação que, entretanto, trabalhaste bastante em sua tese, o que ela traz de positivo (teoria dos sinais, da codificação, da descodificação), o que lhe falta também (ela mede somente uma quantidade de alternativas e pressupõe questões, um sentido que ela não fornece), eu me pergunto se a análise do que a teoria da informação traz, do que ela não traz, das relações destes sinais a uma linguagem natural irredutível, não poderia constituir a basede uma autêntica axiomática das ciências humanas. Você preferiu uma filosofia da natureza? Não se trará de uma crítica, é apenas uma questão. (p. 231-2)
G.SIMONDON – Sem dúvida nenhuma; somente uma coisa: se podemos convocar a noção de subseção, eu diria que me desviei de analisar até o limite o que poderia trazer uma teoria da informação por que me pareceu que ela continha um perigo. Ela encerra o perigo de hipostasiar isto que os Anglo-saxões chamam de ajustamento, de adaptação. A teoria da Informação convém muito bem quando o emissor e o receptor são realidades fixas, isto é, definidas de uma vez por todas; suas regiões do ser, seus status ontológicos são definidos de antemão. Aqui neste ponto, se quiséssemos definir uma teoria das ciências humanas fundada sobre a teoria da Informação, descobriríamos que o valor supremo é se adaptar, se ajustar; tudo o que foi construído neste domínio, todas as mecânicas cibernéticas, todas as tartarugas eletrônicas, todas as raposas eletrônicas, homeostatos, são mecanismos de ajustamento. E é precisamente isto o que me parece inaplicável ao pensamento, à pesquisa do que é o homem. (p. 232)
J.HYPPOLITE – Sem dúvida, mas você reduziu bastante a teoria da informação às suas condições puramente materiais. O importante é a noção de aleatório. Isto que é comunicado em uma mensagem, não é qualquer coisa, mas uma sequência de respostas a questões pressupostas. Em todo caso, há no tratamento da informação um esforço para estruturar o provável e o improvável, uma adaptação notável das matemáticas às ciências humanas. (p. 232)
G.SIMONDON – Mas este aleatório é ambivalente. Há o aleatório significativo e o aleatório não-significativo. O que recuso da teoria probabilística – digo probabilística {233} mesmo – da informação (pois gostaria de uma teoria da informação, mas uma teoria não probabilística) – o que reprovo à teoria probabilística da informação é que ela confunde dois tipos de aleatório, de imprevisível. Se, por exemplo, derramamos areia sobre a mesa para transmitir a posição de cada um dos grãos de areia, seria preciso dispor de uma quantidade de informação que será superior à que seria necessária para transmitir uma página onde estariam inscritos os resumos dos matemáticos mais avançados que conhecemos no momento atual. Dito de outro modo, o aleatório qualquer, do tipo da posição que tomam os grãos de areia sobre uma mesa, custa tanto a ser transmitido, em teoria da informação, – por que é tão imprevisível –, quanto o aleatório significativo. Em televisão, por exemplo, nada é mais difícil de transmitir do que a imagem de um monte de areia. (p. 232-3)
J.HYPPOLITE – Mas neste caso você não foi mais longe do que eu, pois você não produziu o sentido. Você o imaginou com os potenciais e as tensões; é mais uma metáfora. Acredito, de minha parte, que uma reflexão sobre a teoria da informação deve permitir explicitar a diferença entre o sentido e a mensagem. (p. 233)
G.SIMONDON – Como assim?... Há aí um importante problema; não é mais uma teoria da informação que pode resolvê-lo. Por exemplo, se eu quero transmitir um quadrado, eu desenho um quadrado sobre uma página branca, coloco uma câmera de televisão acima da página, e transmito o quadrado com o sistema de análise por linhas. É preciso milhões de pontos separados, nove milhões de sinais separados para transmitir o quadrado, – exatamente como seestivesse transmitindo, por exemplo, a superfície granulada da mesa. Ao contrário, se quero transmitir isso a um correspondente, a saber “Há um quadrado sobre esta página, ele tem nove centímetros de lado e tem a mesma distância entre as duas bordas”, com algumas palavras, por que meu correspondente sabe o que é um quadrado, eu faria muito melhor do que o transmitindo por imagem de televisão. (p. 233)
J.HYPPOLITE – Estamos de acordo. Pode-se transmitir a palavra. Neste momento nos transmitimos mensagens um ao outro,mas isso pressupõe questões, isso pressupõe o sentido. Não acredito que você tenha resolvido este problema do sentido por uma filosofia da natureza, pelas diferenças de potencial da qual você falou, como também não posso resolvê-lo por minha reflexão sobre a noção de informação. No {234} entanto, esta reflexão me permite evitar estas imagens e delimitar exatamente a problemática. Você mesmo parte de uma filosofia da natureza e faz intervir os germes ordinários; mas de onde vêm estes germes primeiros? Esta que é a questão. (p. 233-4)
G.SIMONDON – Eu responderia isso à primeira questão: não acredito que uma teoria da linguagem seja oposta à teoria que eu apresentei, pois, para que a linguagem seja compreendida é preciso que haja tensão no receptor. Assim, por exemplo, uma linguagem que não interessa, uma linguagem que não traz mensagem relativa a um problema que nos ocupa, é uma linguagem morta, precisamente como os grãos de areia; isso não serve pra nada, não informa nada, por que não é o germe que, caindo em nós sobre um terreno metaestável, esperando ser estruturado, o estrutura. Dito de outro modo, é preciso que haja uma espera, é preciso que haja uma necessidade. Aqui, todas as análises que foram feitas sobre as motivações na percepção estariam por apresentar.
Quanto ao segundo ponto, a saber, da origem dos germes estruturais, é evidentemente um problema delicado, mas não acredito que uma teoria da linguagem também possa resolvê-lo. (p. 234)
Linguagem natural e origem do germe arquetípico
J.HYPPOLITE – Mas então como considerar a relação entre toda linguagem figurada e a linguagem natural? (p. 234)
G.SIMONDON – O que seria a linguagem natural? É ainda uma linguagem? (p. 234)
G.SIMONDON – Eu não busquei a origem dos esquemas arquetípicos, a origem das formas. Talvez poderíamos..
J.HYPPOLITE – Se você lhes der então... o quê? Você nos mostrou somente como elas se transmitem e se amplificam? (p. 234)
G.SIMONDON – Como elas estruturam um domínio, sem ser arquétipos que cobrem o todo, e sem estar implicadas em uma relação hilemórfica, isto é, já imanentes no súnolon, no indivíduo. (p. 234)
Modulação de transdutividade e indução (biológica)
S.WEIBERG – Na parte propriamente construtiva, e até mesmo inovadora, de sua exposição, você falou de modulador ou de modulação de transdutividade, sem, segundo você mesmo, poder substituir aí outros termos. Por outro lado, para passar da metáfora para uma expressão mais positiva de ordem bilógica ou física, não se poderia traduzir por “fenômeno de indução”, como nos vírus, por exemplo, poder-se-ia dizer indução dinâmica (e falar igualmente de elemento catalisador) que, tudo somado, forneceria um termo conhecido ao invés de um termo novo, talvez não estritamente indispensável? (p. 235)
G.SIMONDON – Sim, o termo é insuficiente, apenas... ele evita confusões. Poder-se-ia talvez empregar “indução”, entretanto com esta reserva: a indução pode avançar? Isso a partir do que há indução, o que cria a indução, avança? Com uma teoria da indução se pode apenas fundar uma teoria do campo. Mas a origem do campo pode avançar quando a estruturação se propaga? A fonte do campo indutor se propaga também? Eis o que se poderia colocar se quisermos empregar a palavra indução. (p. 235)
S.WEIBERG – De toda maneira, o que causa a indução é em si inapreensível. O que podemos dizer é que está na natureza mesma da indução se propagar progressivamente. Mas eu lhe concedo a palavra catálise, cuja propriedade, neste caso, é evidentemente mais contestável. (p. 235)
G.SIMONDON – Quanto à noção de catalisador, ela não convém bem por que o catalisador permanece estranho à reação: ele é recuperável. Além disso, o catalisador não se propaga através do domínio em que se produz a reação; ao contrário, a tomada de forma transdutiva se propaga como a onda explosiva em uma mistura estrondosa. (p. 235)
Consciência: a individuação como anterior ao corte sujeito/objeto
G.BERGER – Gostaria de colocar uma questão. Onde colocaste a consciência? Deve-se supô-la desde o início? (p. 235)
G.SIMONDON – É muito difícil responder. A consciência, no sentido próprio do termo, não está suposta de saída, como consciência clara. Mas existe análogos da consciência, dispostos em vários níveis, e a consciência integra os esquemas de {236} atividade destes análogos menos perfeitos: existe uma função de consciência que é, precisamente, a aplicação de formas a conteúdos por artifícios que permitem estruturar um domínio de elementos mutuamente incompatíveis sem descoberta de uma dimensão nova. (p. 235-6)
G.BERGER – Compreendo o que em sua demonstração faz pensar a consciência. Mas a consciência me parece ser muito mais que isso: a consciência é o esforço, a experiência, o sentimento. Eu também emprego metáforas, mas como operar de outro modo? Quando você diz que a informação se transmite, que há mais ou menos informação, que a informação é rica ou pobre, traduzi isso em termos válidos para o sujeito: isso significa que a informação aparece apenas quando uma consciência recebe uma mensagem e pode lhe dar uma significação.
É fazendo intervir a consciência que seria talvez possível resolver as dificuldades apresentadas por Sr. Hyppolite e por Sr. Ricoeur. Entretanto, se você permanecer no domínio da análise do objeto, sua teoria, como descrição do objeto, é, me parece, de umaverdade muito grande, mas eu posso utilizá-la somente se existir informação para o sujeito; e se não há informação, isto é, consciência de alguma coisa, então todo o resto perde seu interesse. Pois, o que é um campo? Eu posso explicar um campo pela experiência que eu faço, pela consciência: é uma certa significação. Se, ao contrário, você fala de um campo puramente objetivo, sem um ato pelo qual eu tomo consciência de uma significação, então é uma metáfora.
Há aqui, no interior do seu sistema, alguma coisaque merece ser definida: eu não coloco uma questão particular, mas evoco este problema para saber se seu sistema é mesmo um objetivismo. De modo algum digo isso para diminuir seu interesse. Ao contrário, acredito que é muito sincero, muito claro e muito útil. Mas é um objetivismo que faria sair uma forma mais complicada que as outras, uma realidade nova que você chamaria de consciência?
(p. 236)
G.SIMONDON – Não é um objetivismo; este sistema gostaria de ser um transobjetivismo, isto é, uma teoria segundo a qual a ideia que nos fazemos do objeto é uma representação subjetiva do objeto: nós fazemos do objeto uma ideia pobre e negativa, ele é o que não é o sujeito, um resíduo do conhecimento que o sujeito tem dele. De fato, o verdadeiro real não é “objetivo”; ele deve ser apreendido para além dessa noção redutora. Antes de toda oposição do sujeito e do objeto pode existir um {237} modo de ser anterior ao modo do sujeito e ao modo do objeto. A operação de tomada de forma pertenceria precisamente a este modo de ser.
Segundo esta perspectiva, a consciência não deveria ser considerada através de um esquema adversativo de “tudo ou nada”, de sujeito e de objeto, mas antes a partir de uma transconsciência mais primitiva. Além disso, não acredito poder manter o dualismo que opõe sujeito e objeto, mas, ao contrário, dever considerá-lo como o que exprime o resultado de um processo de tomada de forma que é, neste caso, o processo de individuação. É a palavra ontogênese que resume a questão.
(p. 236-7)
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Simondon, Gilbert. 2017. “Forma, Informação, Potenciais”. Ayvu: Revista de Psicologia 4(1):194–237. doi:10.22409/ayvu.v4i1.22235.
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