Donna Haraway
Fichamento das entrevistas Quanto como uma folha (1997)1 e Uma enorme e pretensiosa ninhada (2019)2 da bióloga, filósofa e feminista Donna Haraway.
Sobre a entrevista
1: Fragmentos publicados originalmente em How like a leaf: an interview with Thyrza Nichols Goodeve / Donna J. Haraway. New York and London: Routeldge, 1999. A Comissão Editorial e as organizadoras do dossiê agradecem às autoras, Donna Haraway e Thyrza Goodeve, e à editora Baldini & Castoldi pela autorização para traduzir para o português os trechos ora publicados. Tradução de Pedro Peixoto Ferreira e André Favilla, revisão técnica de Daniela Tonelli Manica e Martha Ramírez-Gálvez. (2015, p. 48)
Apresentamos aqui a tradução de alguns trechos de uma entrevista conduzida por Thyrza Nichols Goodeve, e divulgada inicialmente no catálogo Fleshfactor do festival Ars Electronica de 1997. Embora a edição inglesa dessa entrevista, publicada no livro How Like a Leaf, já tenha completado quinze anos, a conversa condensa informações preciosas sobre o percurso pessoal-intelectual de Haraway, bem como alguns de seus principais pressupostos e o estilo peculiar com o qual contribui para uma apreensão feminista da tecnociência.
O texto que se segue é uma compilação de partes do segundo, quarto e quinto capítulos dessa entrevista, intituladas respectivamente: Organicismo como teoria crítica; Mais do que metáfora; Prática mundana; Ele não nasceu num jardim, mas certamente nasceu numa história; Quanto como uma folha; e Testemunha Modesta
(2015, p. 48-9)
Contribuições recentes sobre animais não-humanos e espécies companheiras (2003, 2008)
2: No período que se sucedeu à publicação desta entrevista, Donna Haraway publicou mais dois livros dedicados à discussão sobre (outros) animais e espécies companheiras: The Companion Species Manifesto: Dogs, People, and Significant Otherness, Chicago: Prickly Paradigm Press, 2003; e When Species Meet, Minnesota: University of Minnesota Press, 2008. Um dos capítulos deste último foi traduzido e publicado em: HARAWAY, Donna. A partilha do sofrimento: relações instrumentais entre animais de laboratório e sua gente. Horizontes antropológicos, Porto Alegre, v. 17, n. 35, p. 27-64, Junho, 2011. (2015, p. 48)
Quatro livros publicados como história sobre as relações Natureza-Sociedade
Donna J. Haraway: Um dos modos como vejo estes quatro livros [[ Crystals, Fabrics, and Fields (1976), Primate Visions (1989), Simians, Cyborgs, and Women (1991) e Modest Witness (1997) ]], quando eles estão alinhados em sequência é que contam uma narrativa histórica. Desde o início e até o presente, meu interesse tem se voltado para aquilo que acaba contando como natureza e para quem acaba habitando as categorias naturais. Mais do que isso, interesso-me por aquilo que está em jogo no julgamento sobre a natureza e por aquilo que está em jogo na manutenção das fronteiras entre o que é chamado de natureza e o que é chamado de cultura na nossa sociedade. E como os valores se invertem? Como funciona esse dualismo, entre natureza e sociedade ou natureza e cultura, tão importante em nossa história cultural e em nossa política? (2015, p. 49)
[T]odos os quatro livros são versões desse problema e todos eles o abordam por meio da biologia. [[...]] Mas a questão principal é a manutenção dessa junção muito potente entre fato e ficção, entre o literal e o figurativo ou tropológico, entre o científico e o expressivo. (2015, p. 49)
Cristais, tecidos e campos
[O] primeiro livro, Crystals, Fabrics, and Fields: Metaphors of Organicism in Twentieth-Century Developmental Biology, discutiu três estruturas metafóricas que foram usadas para interpretar a forma biológica no século XX, a concepção para a formação e para o controle da forma biológica. “Cristais”, “tecidos” e “campos” são todas metáforas não-reducionistas, querendo dizer, não-atomísticas, não-particularistas. São metáforas que lidam com totalidades complexas e com processos complexos. Em outras palavras, você não pode entender adequadamente a forma quebrando-a em suas menores partes e depois devolvendo-lhes suas relações. (2015, p. 50)
O que conta como natureza na trilogia (Primate Visions, Symians... e Modest_Witness)
Quando as pessoas perdem as relações, o todo, e focam apenas nos pedaços separados, surgem todos os tipos de leituras distorcidas de meu trabalho. Todas as minhas metáforas implicam em algum tipo de ação sinergética em um nível de complexidade que não é acessível por meio das suas menores partes. Portanto, elas são todas metáforas em torno da complexidade. Meu trabalho tem sempre sido sobre o que conta como natureza. De certa forma, sinto que escrevi sobre uma gama de tipos de naturezas. Escrevi sobre naturezas artefatuais nos diversos tipos de trabalhos ciborguianos que escrevi. Uma maneira de encarar esses livros é que Primate Visions, Simians, Cyborgs, and Women e ModestWitness_ tratam de três tipos de entidades – cada um deles investiga diferentemente um conjunto de historicidades, de binarismos, de interfaces, de práticas de conhecimento. Embora ecoando um no outro, eles não são a mesma coisa. ModestWitness_ é, de certo modo, o terceiro livro de uma trilogia. Cada um dos três volumes é composto por seus próprios ensaios e cada um destes tem sua própria história de publicação. Em todos os livros há muita coisa nova que nunca havia sido publicada antes, mas todos eles contêm ensaios que foram escritos e publicados em outras ocasiões. Cada um dos três livros faz algum trabalho dos outros também. Por exemplo, em Simians, Cyborgs, and Women, [os capítulos] “A Cyborg Manifesto” e “The Biopolitics of Postmodern Bodies” são dois ensaios-chave, mas há também os ensaios sobre primatas e aqueles sobre gênero. Da mesma forma, em Primate Visions, há capítulos que enfatizam as qualidades ciborguianas da pesquisa sobre primatas. E em ModestWitness_ há capítulos que enfatizam certos temas ciborguianos mas não o material sobre primatas. Contudo, muitas questões de saberes situados reemergem em ModestWitness_. (2015, p. 50-1)
Sobre a "metodologia" de Haraway e sua ligação com a biologia
Palavras como “metodologia” são muito assustadoras, você sabe! Em vez de “metodologia”, preferiria dizer que tenho modos definidos de trabalhar que se tornaram mais conscientes com o passar dos anos. E é certo que o meu treinamento em biologia –molecular, celular e do desenvolvimento – importa muito para mim. Em particular, na maneira como me permite estar alerta aos seres biológicos e às redes biológicas de relação, tirando um tremendo prazer deles. Sou fascinada pela arquitetura interna das células e dos cromossomos. E não há dúvida de que eu frequentemente penso por metáforas biológicas. (2015, p. 51)
Metáfora biológica, escala e mais-que-metáfora
Sou fascinada por mudanças de escala. Penso que os mundos biológicos convidam a pensar em, e sobre, diferentes tipos de escala. Ao mesmo tempo, mundos biológicos são plenos de imaginações e de seres desenvolvidos de mecanismos e de arquiteturas biológicas bastante extraordinárias. A biologia é uma fonte inesgotável para a tropologia. É certamente plena de metáfora, mas é mais do que metáfora. (2015, p. 51)
Quero dizer [[ com o termo "mais que metáfora"]] não somente as metáforas discursivas e fisiológicas que podem ser encontradas na biologia, mas as estórias. Por exemplo, todas as diferentes incongruências irônicas, quase engraçadas. A pura astúcia e complexidade disso tudo. De modo que a biologia não seja apenas uma metáfora que ilumina alguma outra coisa, mas uma fonte inesgotável de acesso à não-literalidade do mundo. E também, quero chamar a atenção para a simultaneidade do fato e da ficção, da materialidade e da semioticidade, do objeto e do tropo. (2015, p. 51-2)
Tensionamento da distinção indivíduo-coletivo a partir do Mixotricha paradoxa
Utilizo a Mixotricha paradoxa como uma entidade que interroga a individualidade e a coletividade ao mesmo tempo. Trata-se de um organismo unicelular microscópico que vive no intestino posterior do cupim da Austrália setentrional. Aquilo que conta como “ele” é complicado, pois ele vive em simbiose obrigatória com outros cinco tipos de entidades. Cada uma tem um nome taxonômico e cada uma se relaciona estreitamente com bactérias, pois não possuem um núcleo celular. Elas possuem ácido nucléico, possuem DNA, mas este não é organizado em um núcleo. Cada um destes cinco tipos de coisas diferentes vive em ou sobre uma região diferente da célula. Por exemplo, um vive nas interdigitações da superfície exterior da membrana celular. De modo que você tem estas pequenas coisas que vivem nestas dobras da membrana celular e outras que vivem dentro da célula. Mas elas não são, no sentido pleno, parte da célula. Por outro lado, elas vivem em simbiose obrigatória. Ninguém pode viver independentemente aqui. Isso é co-dependência pra valer! E, então, a questão é – ela é uma entidade ou seis? Mas seis tampouco está correto, pois há aproximadamente um milhão das cinco entidades anucleadas para cada célula mononuclear. Há múltiplas cópias. Então, quando é que um decide se tornar dois? Quando é que este conjunto completo se divide de modo que agora você tem dois conjuntos? E o que conta como Mixotricha? É somente a célula nucleada ou é conjunto todo? Obviamente, esta é uma fabulosa metáfora que é uma coisa real para interrogar nossas noções de um e de muitos. (2015, p. 52)
Biologia x psicanálise
A biologia é um recurso infindável. Esta é a razão pela qual sempre preferi biologia [[ ~corpo ]] à psicanálise [[ ~linguagem ]], pois ela coloca para fora muito mais possibilidades para estórias que parecem alcançar algo de nossa existência política, psicológica, histórica. A psicanálise define tudo muito cedo – ela pode ser parte da verdade, mas não é a parte mais interessante. Eu também simplesmente amo o nome Mixotricha [[ fios misturados ]] paradoxa! (2015, p. 53)
Figuras como complexificação da literalidade
É um tipo de mentalidade literal [[ a que lê seu trabalho como tecnofílico ou tecnofóbico, etc. ]]. E é por isso que figuras são tão importantes para mim, porque figuras são imediatamente complexas e não-literais, para não falar instâncias de real prazer na linguagem. Nota-se um estranho literalismo quando críticos criam posições que na verdade não existem – como lendas urbanas recicladas de pessoas dizendo, “Você acredita em DNA!?!” Mas que falta de sofisticação! Isto é triste, revoltante, e retira todo o prazer em linguagem e corpos que anima tanto do trabalho sério em estudos culturais da ciência. (2015, p. 54)
Materialidade da linguagem, semioticidade da matéria
A primeira coisa que eu diria é que palavras são intensamente físicas para mim. Acho palavras e linguagem mais próximas à carne do que às ideias. (2015, p. 54)
TNG: Roland Barthes tem esta ótima frase, “A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem contra a outra. É como se eu tivesse palavras em vez de dedos, ou dedos nas pontas de minhas palavras” (BARTHES, 1978, p. 73). De modo bem semelhante você conta com a suculência metafórica carnal da linguagem.
DH: Dado que eu experiencio a linguagem como um processo intensamente físico, não posso não pensar por meio de metáfora. Não é como se fizesse uma escolha de trabalhar com e por meio de metáfora, é que me experiencio dentro destes processos de semiose intensamente físicos, constantemente desviantes. Bioquímica e linguagem simplesmente não parecem tão diferentes para mim. Há também uma dimensão católica em tudo isto. A minha profunda formação em simbolismo e sacramentalismo católico – doutrinas de encarnação e transubstanciação – foram todas intensamente físicas. A inexorável simbolização da vida católica não é somente anexada ao mundo físico, ela é o mundo físico. Olhe a arte religiosa do sudoeste dos Estados Unidos, a arte mexicana, latina e chicana, e você tem um exemplo intenso disto. Contraste esta arte com a arte protestante mais abstêmia e então imagine o interior de uma igreja na Cidade do México. Cresci em meio ao mundo da arte da Cidade do México, por assim dizer, embora tenha crescido em Denver, Colorado. Era uma cena católica irlandesa, em nada tão rica quanto a tradição cultural latina, mas cresci em grande parte dentro de um mundo narrativo figurado simbólico elaborado no qual as noções de signo e de carne estavam profundamente amarradas uma à outra. Eu entendi o mundo deste modo quando tinha quatro anos.
(2015, p. 54-5)
Meus instintos são sempre fazer a mesma coisa. É insistir na junção entre materialidade e semiose. Carne não é mais uma coisa do que um gene é. Mas a semiose materializada da carne sempre inclui os tons da intimidade, do corpo, do sangramento, do sofrimento, da suculência. Carne é sempre de algum modo úmida. Está claro que não se pode utilizar a palavra carne sem entender vulnerabilidade e dor. (2015, p. 55)
TNG: Há esta citação que guardei de seu “A Manifesto for Cyborgs” de 1985 na qual você diz: “Por que nossos corpos deveriam terminar na pele ou incluir, na melhor das hipóteses, outros seres encapsulados pela pele”?
DH: E outros organismos assim como objetos construídos. Há todos os tipos de não-humanos com os quais nós estamos entrelaçados.
TNG: E também os modos como a nossa carne é feita de carne artefatual. Estou pensando na forma como você emprega sinais sintáticos – “@”, “©”, “TM” – em ModestWitness@SecondMillennium.FemaleMan© _MeetsOncoMouseTM para nos localizar. É um exemplo de como o seu título cria com sucesso um novo tipo de sintaxe e de figuração. O título “ModestWitness@SecondMillennium.FemaleMan©MeetsOncoMouseTM” é seu próprio poema tecnocultural. Você visualiza e teoriza por meio das palavras e sinais sintáticos do título, situando-nos na história do final do século XX. Isto é maravilhoso porque estes sinais são as novas marcas [brands]._
DH: Especialmente com o duplo sentido de marca como tipo e de marca de propriedade, queimada na carne.
(2015, p. 55)
Humor no título de ModestWitness_, modernidade e pós-modernidade
TNG: E em vez de usar a palavra pós-modernismo, ou qualquer outro tipo de categoria da modernidade para marcar a diferença constitucional entre o final do século XX e os momentos iniciais da modernidade, você diz, “Eu dou ao leitor um endereço de e-mail, se não uma senha, para situar as coisas na rede”. (HARAWAY, 1997, p. 43). E-mail é familiar para quase todo mundo hoje. É uma localização crucial para nós na vida cotidiana e significa um modo de comunicação particular à tecnocultura do final do século XX. “@” instancia todas as complexas redes de relação (econômicas, ontológicas, sociais, históricas, tecnológicas) que são cruciais para o pós-modernismo sem nos forçar mais uma vez ao engajamento em todos os ásperos debates acadêmicos em torno do termo.
DH: E é uma piada também.
TNG: Sim. Humor, tanto quanto ironia, é decisivo para seu estilo teórico. Como podemos não rir da descrição que você oferece da combinação transgênica anticongelante tomate-peixe desenvolvida em Oakland, Califórnia, em 1991.7 Dado que eu mencionei o pós-modernismo, estou interessada na sua definição de modernidade.
DH: Minha definição de modernidade é que ela é o período do transporte intensificado de sementes e de genes. Por exemplo, olhe para a invenção do primeiro grande sistema industrial – a agricultura de plantation (que não é uma ideia minha, mas que tomei de outros) – e siga todo o realocamento de populações, de plantas, de açúcar, de mandioca, para alimentar as populações das quais a força de trabalho masculina foi removida para fins de agricultura colonial. Você pode fazer a história da modernidade como a história do transporte de genes também. De fato, você pode tomar cada uma das células-tronco tecnocientíficas que menciono em ModestWitness_ – o cérebro, o chip, o gene, o feto, a bomba, a raça, o banco de dados e o ecossistema, e fazer a história da modernidade.
(2015, p. 56)
7: “Safras resistentes a herbicidas são provavelmente a maior área de engenharia genética ativa de plantas. Eu me encontro particularmente atraída por estes simpáticos novos seres como o tomate com um gene de um linguado de águas geladas profundas, que codifica para uma proteína que retarda o congelamento, e a batata com um gene do bicho-da-seda gigante, que aumenta a resistência à doença. A DNA Plant Technology (Oakland, Califórnia) começou a testar a combinação anticongelante tomate-peixe em 1991”. (HARAWAY, 1997, p. 88). (2015, p. 56)
Prática mundana x (realismo-relativismo)
Me refiro [[ como "prática mundana" ]] àquele conjunto implodido de coisas no qual a fisiologia do corpo, o fluxo de sangue e hormônios e as operações químicas – a carnalidade do organismo – se misturam com a vida total do organismo. De forma que, num certo sentido, você pode começar a falar sobre qualquer dimensão daquilo que significa ser mundano – o comercial, o fisiológico, o genético, o político. (2015, p. 57)
"[M]undano” é uma grande palavra para mim. Mas todos esses adjetivos tratam de maneiras de começar a conversar, a trabalhar. Eles são modos de começar a puxar os fios pegajosos nos quais o técnico, o comercial, o mítico, o político, o orgânico estão implodidos. (2015, p. 57)
Eu escolhi essa palavra como uma maneira de contornar o debate entre realismo e relativismo. Eu poderia ter dito que “realidade” é a separação entre naturezas e culturas e que eu estou trabalhando na direção de um tipo de realismo melhor, mas isso me apoia em uma série de argumentos equivocados. E eu sou acusada de ser uma relativista por aqueles que deliberadamente me interpretam mal, o que me deixa muito brava, pois eu me desdobrei para dizer que essa dicotomia particular é parte do problema. Também, dado que meu comprometimento é com coisas como mortalidade e finitude e carnalidade e historicidade e contingência, pareceu-me que “mundano” era uma boa escolha. Mundano também implica em prestar atenção a coisas como poder e dinheiro. (2015, p. 57)
TNG: Certo – e novamente, o motivo pelo qual eu perguntei é porque isso me lembra de Heidegger e de como ele era tão comprometido com o uso de uma linguagem que era do mundo, que era ordinária ou comum. Mundano é uma palavra terrena, uma palavra aterrada. Ela é francamente despretensiosa.
DH: Correto. De certa forma, “situado” foi um esforço parecido de pegar uma palavra comum e tentar fazê-la fazer um certo número de coisas.
(2015, p. 57)
Criticalidade como noção positiva em Haraway
TNG: Uma das coisas mais importantes que aprendi com você é uma noção de criticalidade [criticality] que vai além do mero “criticismo” – além da criticalidade didática, diagnóstica. Isso me interessa especialmente, pois ultimamente tenho percebido como aquilo que conta como teoria crítica é mais submissa à história do que eu jamais havia pensado. Isso provavelmente tem a ver com a minha posição no mundo da arte, onde a arte crítica assumiu todo tipo de diferentes dimensões de geração a geração. Mas recentemente eu me tornei cada vez menos certa sobre o que as pessoas querem dizer por “crítico”. Sua noção de criticalidade é notadamente diferente da noção tradicional de crítico, significando desconstruir argumentos e enxergar onde se situa o poder. Significaria “crítico” apenas a posse de um argumento? Estou pensando na arte que, ao produzir novos significados, oferece um avanço crítico – abrindo e produzindo. O trabalho crítico pode ser uma atividade produtiva, e não apenas negativa. Li recentemente uma maravilhosa distinção que dizia que a teoria deveria fundar a mudança, e não encontrá-la. Tive esse problema na pós-graduação. Eu sempre lia por aquilo que um texto me dava e não por aquilo que ele não me dava, por isso eu constantemente me surpreendia quando “ler” significava que todos deveriam atacar um autor gritando sobre tudo o que ele ou ela deixou de fora. Procurar apenas as falhas ou as ausências parece uma maneira muito estranha de aprender. Na verdade, parece o oposto de aprendizado.
DH: Odeio este modelo.
TNG: E por que as pessoas pensam que essa é a única maneira de ser crítico?
DH: Parte disso é a competição e o medo de parecer tolo se você não fizer a crítica primeiro. De fato, penso que parte das péssimas políticas raciais funciona a partir do mesmo princípio, segundo o qual as pessoas se apressam em acusar os outros de racistas para não serem julgadas elas mesmas. É como se pensassem que o racismo é algo que você pode expelir facilmente por meio de algumas poucas afirmações. Você não pode eliminar racismos por meio de mantras ou apontando como um determinado artigo não lidou com a raça dessa ou daquela maneira, e então relaxar e pensar que está livre por ter notado isso. Em outras palavras, o fato de ter visto te retira de lá. Não são apenas pessoas brancas que têm essa relação com o racismo. E penso que algo desse estilo de crítica negativa na pós-graduação, em relação não apenas ao racismo mas a muitos outros tipos de coisas, está enraizado num medo de aceitar algo com toda a sua bagunça e sujeira e imperfeição.
(2015, p. 58)
[Ainda sobre isso, em The Haraway Reader (2015, p. 326-7): "(...) I use critique, i.e., in the sense that things might be otherwise.It is a sense of critique that is not negative, necessarily, except in the particular way that the Frankfurt School understood negativity-a way which I think is really worth remembering and holding on to. It is critique in the deep sense that things might be otherwise. There is much of the Frankfurt School that I have never embraced, but that sense of critique as a freedom project is important. There was a certain amount of work, and there even still is a certain amount of work in that freedom project that oppositional, or critical cyborgs can do, but I agree that it is much less true now than it was in 1983. Precisely because of the kind of tightening of the Internet around us all; precisely because we are now in the matrix in such a relentlessly literal way that there is some really new tropic work that has to be done in this figure."]
Ciborgue como figura aberta e dinâmica, pós 2a grande guerra (~militarização, industrialização)
TNG: Vamos seguir para o ciborgue, para como você escolheu desenvolver um sistema crítico por meio da produção de novas formulações e relacionamentos a partir dos problemas e contradições – a “bagunça e sujeira” – da vida como a habitamos diariamente. Obviamente, o mito do ciborgue é seu exemplo principal. Uma grande má-interpretação do ciborgue ocorre quando as pessoas não veem sua qualidade generativa, que não é somente uma negação das velhas estruturas de poder (militarismo, Grande Ciência, patriarcalismo, etc.) mas, uma tentativa de ver as coisas diferentemente. Como em sua discussão do gene, o ciborgue não é uma coisa ou um tópico acabado mas, por definição, constantemente transformando e sendo repensado. Ou, como você uma vez colocou, “Ciborgues não ficam parados”.8
DH: Isto está certo, ele é um tópico aberto e o ciborgue está neste conjunto curioso de relacionamentos familiares com espécies-irmãs de vários tipos. É uma figuração que requer que se pense nos aspectos dos sistemas de comunicação feitos pelo homem, a mistura do orgânico e do técnico que é inescapável nas práticas ciborguianas.
TNG: Há uma tendência para o ciborgue ser deshistoricizado hoje em dia. No entanto, é crucial compreender que o próprio ciborgue tem uma história, é um filho de um certo momento da história, e portanto ganhará diferentes sentidos e características em relação aos processos históricos.
DH: Definitivamente – ele tem camadas de histórias. Como emprego o termo, sou inflexível que o ciborgue não diga respeito a todos os tipos de relacionamentos maquínicos, artefatuais, com seres humanos. Tanto o humano quanto o artefatual possuem histórias específicas. Por um lado, o ciborgue não é a mesma coisa que o androide. O androide tem de fato uma história muito mais longa. O androide surge dos brinquedos mecânicos do século XVIII e do esforço para construir modelos maquínicos, especificamente modelos miméticos de movimento humano. Embora haja um certo tipo de câmara de eco entre o androide e o ciborgue, certos tipos de continuidades e descontinuidades, me empenho muito para que o termo “ciborgue” seja utilizado para designar especificamente aqueles tipos de entidades que se tornaram historicamente possíveis por volta da Segunda Guerra Mundial e logo após. O ciborgue está intimamente envolvido em histórias específicas de militarização, de projetos de pesquisa específicos com ligações com a psiquiatria e a teoria da comunicação, a pesquisa comportamental e a psicofarmacológica, as teorias da informação e o processamento de informação. É essencial que o ciborgue seja visto emergindo de tal matriz específica. Em outras palavras, o ciborgue não é “nascido” mas ele tem de fato uma matriz (rindo)! Ou melhor, ele não tem uma mãe, mas ele tem de fato uma matriz! Ele não nasceu num jardim, mas certamente nasceu numa história. E esta história não tem sido suave e tem aproximadamente meio século agora.
(2015, p. 59-60)
8: “Ciborgues não ficam parados. Já nas poucas décadas que eles têm existido, eles, em fato e ficção, alteraram-se em entidades de segunda ordem como bancos de dados genômico e eletrônico e outros habitantes da zona chamada ciberespaço”. (HARAWAY, 1995a, p. xix) (2015, p. 59)
Modernismo x pós-modernismo como escolha narrativa, ciborgue como figura que promove a emergência do inesperado
TNG: Você poderia fazer uma distinção modernista, pós-modernista?
DH: Poderia, mas, novamente, estas são todas escolhas narrativas. Não é que a própria história determine estas narrativas, mas que as narrativas moldam a história.
TNG: Bem colocado.
DH: Está relacionado com o que falamos antes quando as pessoas engatam somente em um aspecto. Por exemplo, aqueles que relegam o ciborgue a um tipo estranho, atenuado, de euforia tecnofílica ou de amor cintilante a todas as coisas ciber, o que está completamente errado. Ou eles pensam que o ciborgue seja meramente uma figura condenatória, encravado como ele está no militarismo. O que me interessa mais sobre o ciborgue é que ele faz coisas inesperadas e responde por histórias contraditórias, permitindo ao mesmo tempo algum tipo de trabalho no e do mundo.
(2015, p. 60)
"Quanto como uma folha eu sou"
Bem, um [[ momento que me lembro da "ciborgologia" ou "ciborguidade" se cristalizando para mim ]] é certamente meu sentido de complexidade, interesse e prazer – assim como a intensidade – de como imaginei quanto como uma folha eu sou. Por exemplo, eu sou fascinada com a arquitetura molecular que plantas e animais compartilham, e também pelos tipos de instrumentação, interdisciplinaridade e práticas de conhecimento que entraram nas possibilidades históricas de compreender o quanto eu sou como uma folha. (2015, p. 61)
Contingencia histórica como alternativa ao construtivismo radical e ao determinismo, ênfase na especificidade histórica da tecnociência
Parte do desconforto [[ em relação ao seu modo de encarar a biologia e a ciência ]] vem do fato de que se você fala sobre a implacável contingência histórica de experienciar a si próprio, ou sobre a manufatura do conhecimento científico, as pessoas ouvem relativismo ou puro construtivismo social, o que não é de modo algum o que estou dizendo. Mas este é o tipo de redução que continua sendo feita. E há então as pessoas que se sentem ameaçadas porque leem tais análises como determinismo biológico! Um tipo de naturalismo que elas não querem, pois são construtivistas sociais e não querem dar muito peso ao biológico ou ao natural. Estou tentando dizer ambos, e, nem, tampouco, e então um monte de confusão aparece, e não um tipo muito produtivo de confusão. Estou falando sobre um modo de interação com o mundo que é implacavelmente específico historicamente. A tecnociência é uma semiose materializada. É como nós nos engajamos com e no mundo. O que não é a mesma coisa que dizer que o conhecimento é opcional. É dizer que há nele uma especificidade que você não pode esquecer. (2015, p. 61-2)
Responsabilidade (ética) do humano, atividade dos atores não-humanos (?)
TNG: Responsabilidade é uma das forças – e substâncias – mais potentes em seu trabalho. De muitas maneiras ela está no centro – se o seu trabalho tem um centro. É o principal ponto de sustentação de suas análises. Você nos ensina a sermos responsivas a todas as complexidades na tecnocultura do final do século XX, e então você anexa a esta responsividade os requerimentos da responsabilidade.
DH: Bem, são as pessoas que são éticas, não estas entidades não-humanas.
TNG: Você quer dizer, romantizar o não-humano?
DH: Certo, este é um tipo de antropomorfização dos atores não-humanos com a qual precisamos ter cautela. Nossa relacionalidade não é do mesmo tipo de ser. São as pessoas que têm responsabilidade emocional, ética, política e cognitiva dentro destes mundos. Mas não-humanos são ativos, não passivos, recursos ou produtos.
(2015, p. 62)
Cama de gato como jogo, como uma metodologia
TNG: É nesta compreensão multidimensional que aparece a sua noção de uma cama de gato, isto é, um estudo da tecnociência anti-racista, feminista, multicultural?
DH: Esta é uma daquelas formulações impossíveis!
TNG: O que estou perguntando é se a cama de gato é uma outra figura para você, ou é uma metodologia?
DH: Bem, dado que cama de gato é um jogo, suspeito que seja uma metodologia com “m” minúsculo. É um modo de trabalhar e de pensar sobre trabalho, de forma que neste caso ele seja endereçado às pessoas dos estudos da ciência para se valerem mais densamente dos estudos feministas e dos estudos culturais e vice-versa. Cama de gato pode ser jogada em suas próprias mãos, mas é mais interessante jogar com outra pessoa. É uma figura para construir relacionalidade que não seja agonística.
TNG: É similar àquilo que você defende em termos do discurso do sistema imunológico em “The Biopolitics of Postmodern Bodies” usando a série Xenogenesis de Octavia Butler?10
DH: Sim. Mas é importante que a cama de gato não se torne o modelo singular. Existem algumas práticas tecnocientíficas contra as quais gostaríamos de adotar uma postura oposicionista e antagônica. As metáforas de harmonia e coletividade também não são a estória completa dado que, às vezes, competição e luta e mesmo metáforas militares podem ser o que precisamos. É apenas que a agonística tem sido tão excessivamente enfatizada dentro de muito da tecnociência. Eu estava escrevendo especificamente contra aspectos do livro de Bruno Latour, Ciência em Ação, que é tão esmagadoramente dependente de metáforas de agonística e combate. A figura da cama de gato é uma resposta direta àquilo. É portanto uma metáfora contextual.
(2015, p. 62-3)
Sobre os estudos feministas da tecnociência
Se a tecnociência, em nosso momento na história, é inequivocadamente “natureza” para nós – e não somente natureza mas natureza-cultura – então compreender a tecnociência é um modo de compreender como naturezas e culturas se tornaram uma palavra só. Então, a análise da tecnociência, a compreensão de em que tipo de mundo estamos vivendo, é o que chamamos de estudos de tecnociência. Estudos feministas da tecnociência levam a sério aquela lista de coisas que você acabou de ler [[ “tecnociência com democracia”, “objetividade forte, uma que seja comprometida com projetos de igualdade humana”, é “modesta, universal, abundante”, e “constituída de projetos de conhecimento autocríticos” ]]. Então, isto envolve a liberdade tecnocientífica, a democracia tecnocientífica, a compreensão de que democracia diz respeito ao empoderamento de pessoas que estão envolvidas na montagem e desmontagem de mundos, que processos tecnocientíficos estão lidando com alguns mundos em vez de outros, que a democracia exige que as pessoas estejam substantivamente envolvidas e se saibam envolvidas, e tenham poder para serem cobradas e coletivamente responsáveis umas pelas outras. E estudos feministas de tecnociência passam repetidamente pelas contradições permanentes e dolorosas de gênero. (2015, p. 63-4)
Tecnociência feminista realmente significa ir além dos tipos de instituições que temos agora. Ela está cheia de diferentes tipos de processos de trabalho e de práticas-conhecimento, incluindo a remodelagem do tempo e do espaço. Por exemplo, interagir efetivamente no trabalho, trabalhar com pessoas, realmente envolve repensar o tempo e as carreiras e a velocidade da pesquisa. (2015, p. 64)
Sobre o testemunho modesto
Processos tecnocientíficos no momento contam com vastas disparidades de riqueza, poder, agência, soberania, oportunidades de vida e morte. Os projetos iluministas para igualdade têm um tipo de saliência modificada dentro da tecnociência hoje. Sou uma filha do Iluminismo; é disso que trata, em grande parte, ModestWitness_. Não estou repudiando a herança de democracia e liberdade e todas aquelas heranças iluministas poluídas. Eu as vejo como que deturpadas. Estou tentando retrabalhá-las.
(2015, p. 64)
12: Em ModestWitness_, a testemunha modesta representa a estória dos estudos da ciência assim como da ficção científica. FemaleMan© é a figura mais importante do feminismo. OncoMouseTM é a figura da biotecnologia e da engenharia genética, uma sinédoque para a tecnociência. (2015, p. 64)
“Testemunha modesta”, junto com OncoMouseTM e FemaleMan©, são figuras que uso no livro para representar novos modos de imaginar e de fazer tecnociência.12 Em referência a ModestWitness@SecondMillennium, o leitor vê imediatamente que ela/e é o emissor e o receptor de mensagens em meu endereço de e-mail. Mas conto também com a complexa história do “testemunhar” e de ser uma “testemunha” dentro das estórias dos estudos da ciência em relação ao desenvolvimento do método experimental por Robert Boyle no século XVII e às controvérsias subsequentes sobre como fatos são estabelecidos crivelmente. Por exemplo, Thomas Hobbes repudiou o modo de vida experimental precisamente porque o conhecimento associado a este modo de vida era dependente de uma prática de testemunho por uma comunidade especial, como aquela dos clérigos e dos advogados. Estou interessada neste tipo preciso de testemunho, pois é sobre ver; atestar; ser publicamente responsável por, e fisicamente vulnerável a, suas visões e representações. Testemunhar é uma prática coletiva, limitada, que depende da credibilidade construída e nunca finalizada daqueles que o fazem, todos os quais são mortais, falíveis e repletos das consequências de desejos e temores inconscientes e rejeitados. Como cria da Sociedade Real da Restauração Inglesa de Robert Boyle e do modo experimental de vida, eu permaneço ligada à figura da testemunha modesta. Minha testemunha modesta é sobre dizer a verdade – dar testemunho confiável – ao mesmo tempo evitando o aditivo narcótico das fundações transcendentais. Ela refigura os sujeitos, os objetos e o comércio comunicativo da tecnociência em diferentes tipos de nós. (2015, p. 64-5)
Modesta”, como “testemunha”, tem uma história profunda e complexa nos estudos da ciência em relação a gênero e aos experimentos de Robert Boyle com a bomba de ar e o desenvolvimento do modo de vida experimental. Retomo a análise de Elizabeth Potter da maneira como o gênero estava em jogo no modo de vida experimental do período dentro do contexto dos debates sobre a proliferação de gêneros na prática do cross-dressing. Mantenho a figuração de “modéstia” porque o que contará como modéstia agora é precisamente o que está em questão. Há o tipo de modéstia que faz você desaparecer e há o tipo que ressalta sua credibilidade. Modéstia feminina tem sido sobre estar fora do caminho enquanto modéstia masculina tem sido sobre ser uma testemunha crível. E então há o tipo de modéstia feminista (e não feminina) que estou defendendo aqui, que é sobre um tipo de imersão no mundo da tecnociência na qual você faz uma dura intersecção de perguntas sobre raça, classe, gênero, sexo com o objetivo de fazer uma diferença no mundo “material-semiótico” real. (2015, p. 65-6)
Eu sei o que você quer dizer [[ sobre confiar em pessoas modestas ]]. E as pessoas também tomam erroneamente modéstia por vitimização por causa do duplo sentido de modéstia – a modéstia que é sobre desaparecimento, ou acobertamento, que é mal entendida como incompetência. Modéstia verdadeira é sobre ser capaz de dizer que você tem mesmo certas habilidades. Em outras palavras, ser capaz de fazer afirmações fortes de conhecimento. Não se render ao relativismo estúpido, mas testemunhar, atestar. O tipo de testemunha modesta que demando é um que insiste na situacionalidade, onde a localização é ela própria uma construção complexa assim como uma herança. É uma figura que faz suas apostas com projetos e necessidades daqueles que não habitariam ou não poderiam habitar as posições subjetivas dos “laboratórios”, do homem civil e crível de ciência. O ponto é, TestemunhaModestanoSegundoMilênio precisa de um novo modo de vida experimental para satisfazer a esperança milenar de que a vida sobreviverá neste planeta. Uma testemunha não é um observador desinteressado, não é um marciano. Penso sobre testemunhar como algo implicado na prática mundana que discutimos anteriormente porque uma testemunha também não é um cérebro-num-vaso. Uma testemunha está sempre em risco de atestar alguma verdade em vez de outras. Você testemunha. Pessoas que vão à Guatemala, Chiapas, Nicarágua ou El Salvador para testemunhar estão fazendo algo que é absolutamente sobre estar engajado. Elas estão também envolvidas no requerimento de dizer a verdade, fazendo-se responsáveis por testemunhar e dizer a verdade. Testemunhar, neste caso, é anti-ideológico no sentido de resistir à “estória oficial”. Verdade aqui não se escreve com um “V” maiúsculo; i.e., verdade que é transcendente ou fora da história. Ela é resolutamente histórica; atestando as condições de vida e morte. (2015, p. 66-7)
Definitivamente [[ há na noção de testemunho um senso próprio de ética ]]. E conhecimento científico é sobre testemunhar. O método experimental é sobre isto, sobre o fato de estar lá. E o fato de saber certas coisas por estar lá modifica o senso de responsabilidade. Assim, longe de ser indiferente à verdade, o enfoque que tento defender é rigorosamente comprometido com testar e atestar. Com se engajar e compreender que este é um empreendimento sempre interpretativo, interessado, contingente, falível. Não é nunca um relato desinteressado. (2015, p. 67)
Localidade da objetividade e situacionalidade do saber
Certo [[ tem a ver com uma noção comum de objetividade científica ]], mas objetividade é sempre uma conquista local. Trata-se sempre de manter as coisas juntas bem o bastante para que as pessoas possam participar poderosamente daquele relato. “Local” não significa pequeno ou inapto a viajar. (2015, p. 67)
A testemunha modesta é aquela que pode estar engajada em conhecimentos situados. (2015, p. 67)
Sobre sua perspectiva ser anti-perspectivista (não-relativista)
Nossa visão nunca foi de que a verdade é apenas uma questão de perspectiva. "A verdade é uma perspectiva" nunca foi nossa posição. Nós íamos contra ela. A teoria feminista do ponto de vista [standpoint theory] sempre foi anti -perspectivista. Assim como era o Manifesto Ciborgue, os conhecimentos situados, as noções vindas da teoria ator-rede [do filósofo] Bruno Latour, e assim por diante. (2022, p. 8)
Pós-verdade x materialismo semiótico. Corporidade do discurso.
A "pós-verdade" desiste do materialismo. Ela desiste do que eu venho chamando de materialismo semiótico: a ideia de que o materialismo é sempre uma produção situada de significados e nunca simplesmente uma representaçãoa. Essas não são questões de perspectiva. São questões de mundificação em toda sua espessura. O discurso não é apenas ideias e linguagem. O discurso é corporal. Ele não é incorporado como algo que se prende em um corpo. Ele é corporal e é a corporificação, a mundificação. Isso é o oposto da pós-verdade. Trata-se de entender como reivindicações fortes sobre o conhecimento não são apenas possíveis, mas necessárias ― pelas quais vale a pena viver e morrer. (2022, p. 8)
Episódio no Brasil sobre se Haraway e Latour "acreditam na realidade"
Estávamos nesta conferência no Brasil. Era um bando de primatólogos mais eu e Bruno. E o Stephen Glickman, um biólogo muito legal, um homem que nós dois amamos, que lecionou na Universidade de Berkeley por anos e estudava hienas, nos chamou para conversar em particular. Ele disse: “Então, eu não quero causar nenhum constrangimento. Mas vocês acreditam na realidade?”
Nós dois ficamos meio chocados com a pergunta. Primeiro, ficamos chocados por essa ser uma questão de crença, que é um problema protestante. Um problema confessional. A ideia de que a realidade é uma questão de crença é um legado de certa forma secularizado das guerras religiosas. Na verdade, a realidade é uma questão de mundificação e habitação dos mundos. É uma questão de testar a sustentação [holding-ness] das coisas. As coisas se mantêm [hold] ou não?
Veja a evolução. A noção de que você poderia ou não “acreditar” na evolução já acaba com o jogo. Se você diz: “É claro que acredito na evolução”, você perde, porque com isso você entra na semiótica do representacionalismo ― e, consequentemente, na pós-verdade. Você entra em uma arena onde tudo isso é apenas questão de convicção interna e nada tem a ver com o mundo. Você deixou o domínio da mundificação.
Os Guerreiros da Ciência que nos atacaram durante as Guerras da Ciência estavam determinados a nos pintar como construcionistas sociais ― aqueles que acreditam que toda verdade é puramente construída socialmente. Eu acho que entramos nisso. Nós demos espaço para essas leituras equivocadas a nosso respeito de várias maneiras. Poderíamos ter sido mais cuidadosos, ter ouvido e nos envolvido mais devagar. Era muito fácil nos ler da maneira que os Guerreiros da Ciência faziam. Então, a direita se apropriou das Guerras da Ciência, o que acabou ajudando a alimentar todo o discurso das fake-news.
(2022, p. 9)
Sobre mundo como relacionalidade como mundificação
Ambos os termos [[ objetividade e relativismo ]] habitam o mesmo quadro ontológico e epistemológico - um quadro que meus colegas e eu temos tentado tornar inabitável. Sandra Harding falava de "objetividade forte" e meu idioma era "saberes localizados". Nós tentamos desautorizar o individualismo possessivo que vê o mundo como unidades + relações. Pegamos as unidades, misturamos essas unidades com relações, e chegamos aos resultados. Unidades + relações = mundo. (2022, p. 10)
Não temos unidades + relações. Temos apenas relações. É mundificação. Toda a história é sobre gerúndios ― mundificando, corporificando, tudo-ndo [worlding, bodying, everything-ing]. As camadas são herdadas de outras camadas, temporalidades, escalas de tempo e espaço, que não se encaixam perfeitamente mas que têm geometrias estranhamente modeladas. Nada começa do zero. Mas o jogo ― e acredito que o conceito de jogo é incrivelmente importante nisso tudo ― propõe algo novo, quer seja o jogo entre cachorros ou entre cientistas em seu campo de ação. (2022, p. 10)
Não se trata da oposição entre objetividade e relativismo. E sim da espessura da mundificação. Trata-se, também, de pertencer a certos mundos e não outros, de estar disponível para alguns mundos e não para outros; trata-se de um comprometimento materialista em muitos sentidos. (2022, p. 10)
Sobre o essencialismo estratégico
Até hoje conheço apenas um ou dois cientistas que gostam de falar assim. E há boas razões pelas quais cientistas permanecem muito cautelosos com esse tipo de linguagem. Eu faço parte do movimento Defend Science e na maioria dos eventos públicos que participo, falo com cuidado sobre meus próprios compromissos ontológicos e epistemológicos. Eu uso uma linguagem representacional. E defendo uma objetividade menos forte, porque acho que temos que fazê-lo, situadamente.
Isso é má-fé? Não exatamente. Isso está relacionado com [o que a teórica pós-colonial Gayatri Chakravorty Spivak chamou de] "essencialismo estratégico". Há uma estratégia em falar o mesmo idioma das pessoas que estão no mesmo espaço que a gente. Nós criamos um idioma bom o suficiente para que possamos trabalhar em algo conjuntamente. Interessa aquilo que é possível fazermos juntos nesse espaço. E amanhã nós vamos mais longe.
Nas lutas em torno das mudanças climáticas, por exemplo, você tem que se juntar a seus aliados para bloquear a máquina cínica, bem-financiada e exterminacionista que está desenfreada na Terra. Acredito que meus colegas e eu estamos fazendo isso. Não nos calamos, nem desistimos do aparato que desenvolvemos. Mas é possível colocar em primeiro ou em segundo plano o que é mais proeminente, dependendo da conjuntura histórica. (2022, p. 10-11)
Sobre o contexto de escrita do manifesto ciborgue
Isso aconteceu logo após a eleição de Ronald Reagan. O futuro que conseguíamos prever era uma guinada intensa à direita. Era o fim definitivo dos anos 1960. Na mesma época, Jeff [[ Escoffier, editor da Socialist Review ]] perguntou se eu poderia representar a Socialist Review em uma conferência sobre Novas e Velhas Esquerdas em Cavtav na Iugoslávia [hoje Croácia]. Eu disse que sim e escrevi um pequeno artigo sobre biotecnologias reprodutivas. Muitas pessoas desembarcaram em Cavtav e havia relativamente poucas mulheres. Então, nós rapidamente nos identificamos umas às outras e formamos alianças com as mulheres da equipe do evento, mulheres que estavam fazendo todo o trabalho reprodutivo, cuidando de nós. Nós acabamos deixando de lado nossos artigos e palestrando sobre diversos tópicos feministas. Foi bastante divertido e bem empolgante.
Depois dessa experiência, eu voltei à Santa Cruz e escrevi o Manifesto Ciborgue. Ele acabou tendo mais de cinco páginas e sendo uma reconciliação com tudo que aconteceu comigo entre 1980 e o ano que ele foi lançado, 1985.
[[ A proximidade com o vale do silício ]] É parte do ar que você respira aqui. Mas as verdadeiras alianças tecnológicas da minha vida vêm de Rusten, meu parceiro, e seus amigos e colegas de trabalho, porque ele trabalha como desenvolvedor de software freelance. Ele fez trabalhos para a Hewlett Packard por anos. Ele tinha um vasto histórico nesse mundo: quando tinha apenas catorze anos, conseguiu um trabalho programando cartões perfurados para empresas em Seattle.
O Manifesto Ciborgue foi o primeiro artigo que escrevi na tela de um computador. Nós tínhamos um HP-86 velho. E eu o imprimi em uma daquelas impressoras de impacto. Uma impressora da qual eu nunca conseguia me livrar, ninguém queria ela. Ela acabou indo parar em alguma lixeira. Deus nos ajude.
(2022, p. 12)
Sobre o uso da categoria trabalho no movimento Wages for Housework
O Wages for Housework foi muito importante. E sempre acho que devemos trabalhar com adição e não subtração. Sempre a favor de expandir a ninhada. Assistamos as uniões e as desuniões, as composições e decomposições, à medida que a ninhada se prolifera. Trabalho é uma categoria importante com uma história forte, e o Wages for Houseworki promoveu uma expansão dela.
Mas os pensadores com raízes marxistas também tem uma tendência de fazer a categoria trabalho trabalhar demais. Grande parte das coisas que acontecem precisam ser espessamente descritas com outras categorias ― ou ao menos descritas em emaranhados interessantes que envolvem o conceito de trabalho.
(2022, p. 13)
Trabalho x Jogo
Jogo é uma [[ outra categoria interessante de se acrescentar à de trabalho ]]. Trabalho está muito ligado à funcionalidade, enquanto que o jogo é uma categoria da não-funcionalidade.
A ideia de jogo diz respeito a muito do que acontece no mundo. Existe uma espécie de oportunismo barato na biologia e na química, onde as coisas trabalham estocásticamente para formar sistematicidades emergentes. Não é uma questão de funcionalidades objetivas. Precisamos desenvolver maneiras de pensar esses tipos de atividades que não são capturadas pela funcionalidade, que propõem possíveis-ainda-impossíveis, ou coisas que são impossíveis mas que ainda estão em aberto.
(2022, p. 13-4)
Sobre a necessidade de noções positivas (criatividade?) para além de negativas (crítica)
Parece, acredito eu, que nossa política atualmente exige que demos uns aos outros a força para fazer exatamente isso. Para descobrir como, juntos uns dos outros, conseguiremos abrir as possibilidades daquilo que ainda pode vir a ser. E não é possível fazer isso num estado mental negativo. Não é possível fazer isso se tudo o que fazemos é criticar. Nós precisamos da crítica, é evidente. Mas não é ela que vai abrir nossas percepções para aquilo que pode vir a ser. Não é ela que vai abrir nossas percepções para aquilo que ainda não é possível, mas é profundamente necessário. (2022, p. 14)
Jogo e imaginação política em ocupações políticas
O tanto que as pessoas nessas ocupaçõesi [[ Graham Common ou Dakota Access Pipeline ]] investem em jogar é parte crucial de como elas geram uma nova imaginação políticaa, o que, por sua vez, aponta para o tipo de trabalho que precisa ser feito. Elas possibilitam a imaginação de algo que não é o que [a etnógrafa] Deborah Bird Rose chamou de “morte dupla” ― exterminação, extração, genocídio. [[...]] Essa não é uma questão humanista. É uma questão multi-gênero e multi-espécie. (2022, p. 14-5)
Sobre o surgimento de novas questões: a imigação, o exterminismo e o extrativismo
Sim e não [[ em relação à pergunta sobre se as catástrofes climáticas e ecológicas mudam o que Haraway pensa no Manifesto ciborgue ]]. As teorias que desenvolvi naquele período emergiram de uma conjuntura histórica específica. Se eu estivesse mapeando o circuito integrado hoje, esse mapeamento teria parâmetros diferentes daqueles usados no mapa que fiz no começo dos anos 1980. E certamente as questões da imigração, do exterminismo e do extrativismo teriam que ser profundamente levadas em conta. A reconstrução da vida em sua ligação com o território em que se vive, teria que receber mais atenção. (2022, p. 15)
Guinada à direita em 1980 x guinada fascista em 2010
O Manifesto Ciborgue foi escrito no contexto da acentuada guinada à direita dos anos 1980. Mas essa guinada foi uma coisa; a acentuada guinada facista do final dos anos 2010 é outra coisa. Não é o mesmo que Reagan. Os presidentes da Colômbia, da Hungria, do Brasil, do Egito, da Índia, dos Estados Unidos ― estamos vendo um novo capitalismo facista, o que coloca a necessidade de reelaborar as ideias do início da década de 1980 para que elas façam sentido. (2022, p. 15)
Sobre a otimização tecnológica, a vigilância e o cercamento do comum
Se a dicotomia público-privado era antiquada em 1980, em 2019 nem sei como chamá-la. Temos que tentar reconstruir algum senso de público. Mas como é possível reconstruir o que é público diante de uma vigilância quase total? E essa vigilância sequer tem um centro único. Não existe um olho que tudo vê.
E ainda temos o cercamento contínuo dos comuns. O capitalismo produz novas formas de valor e em seguida cerca essas formas de valor — o digital é um exemplo especialmente bom. Essa dinâmica envolve a monetização de praticamente tudo o que fazemos. E não é como se ignorássemos essa dinâmica. Nós sabemos o que está acontecendo. Só não temos a menor ideia de como lidar com isso.
(2022, p. 15-16)
Sobre o xenofeminismo e o foco sobre questões climáticas e multiespécie (e não tecnológicas)
Uma tentativa de atualizar as ideias do Manifesto Ciborgue veio das “xenofeministas” do coletivo internacional Laboria Cuboniks. Acredito que algumas delas se descreveram como suas “filhas desobedientes”.
Exagerar nas coisas, esse não é o meu feminismo.
Por que não?
Sinceramente, não estou muito interessada nessas discussões. Não é o que estou fazendo. Não é o que me dá vigor agora. Em um momento de urgência ecológica, estou mais engajada em problemas de justiça ambiental e reprodutiva multiespécies. Essas questões certamente envolvem problemas de cultura digital, robótica e maquínica, mas elas não são meu foco agora. O que mais chama minha atenção agora são as questões de soberania no acesso à terra e à água, como as que envolvem o oleoduto Dakota Access, ou a mineração de carvão no planalto Black Mesa, ou o extrativismo que se dá em todos os lugares. Tenho concentrado minha atenção nas crises de extermínio e extinção acontecendo a nível global, com o desalojamento e a falta de moradia para humanos e não-humanos. É aí que estão minhas forças. Meu feminismo está nesses outros lugares e corredores.
(2022, p. 16)
Sobre a pertinência da figura do ciborgue
O ciborgue continua sendo uma figura trapaceira e astuta. E, assim, eles também são meio antiquados. Eles dificilmente são atualizados. Eles são bastante desajeitados, um pouco como o R2-D2 ou um marca-passo. Talvez a nossa digitalidade corporificada não seja capturada especialmente bem pelo ciborgue. Então, não tenho certeza. Mas, sim, acho que os ciborgues ainda estão na ninhada. Eu acho que precisamos de uma enorme e pretensiosa ninhada, com um monte de pessoas fodas ― algumas até são homens! (2022, p. 16)
Dúvidas quanto a possibilidade de resolução de problemas climáticos por meio da tecnologia
Então, entro em conflito comigo mesma quando vejo enormes campos solares e parques eólicos, porque, por um lado, eles podem ser melhores do que a hidrofraturação [fracking] no condado de Monterey ― mas só talvez. Também porque sei de onde vêm os minerais raros necessários para o funcionamento das tecnologias de energia renovável e em que condições eles são minerados. Ainda não estamos fazendo a análise de toda cadeia de suprimentos de nossas tecnologias. Sendo assim, acho que temos um longo caminho a percorrer na compreensão socialista dessas questões. (2022, p. 17)
Sobre o Antropoceno
Eu acho que o Antropoceno enquanto quadro de análise tem sido um termo guarda-chuva fértil para bastante coisa, na verdade. O Antropoceno se revelou um território bastante amplo para a incorporação de pessoas em luta. Há muitas colaborações interessantes acontecendo entre artistas, cientistas e ativistas.
O principal ponto negativo sobre o termo é que ele perpetua o mal-entendido de que o que aconteceu é um traço humano enquanto espécie, como se os seres humanos como espécie necessariamente exterminassem todos os planetas em que ousamos viver. Como se não pudéssemos parar nossos excessos produtivos e reprodutivos.
O extrativismo e o exterminacionismo não são traços da espécie humana. Eles vêm de uma conjuntura situada historicamente há cerca de quinhentos anos, inaugurada com a invenção da plantation e depois com a modelagem do capitalismo industrial. Uma conjuntura situada historicamente que teve efeitos devastadores mesmo quando criou uma riqueza surpreendente.
(2022, p. 18)
Sobre a necessidade de se criar pontos de contato
Existem diversas outras formas de pensar. A mudança climática, por exemplo. Atualmente, "mudança climática" é uma categoria necessária e essencial. Mas se você vai para o Círculo Polar Ártico, sendo um cientista do sul que quer colaborar com povos indígenas em questões de mudanças climáticas ― como as mudanças na porção congelada do mar (banquisa), por exemplo, ou as mudanças nos modos de caça e subsistência ―, as limitações dessa categoria serão profundas. Porque ela não interage com as categorias indígenas que são de fato acionadas e incidem sobre aquele espaço.
Em inuctitute existe a palavra "sila". Num léxico anglófono, "sila" pode ser traduzida como "clima". Mas, na realidade, ela é muito mais complicada do que isso. No Círculo Polar Ártico, mudança climática é um conceito que reúne um grande número de coisas que cientistas do sul não entenderão. Por isso, para o cientista do sul que deseja colaborar com a questão das mudanças climáticas é quase impossível construir uma zona de contato.
De toda forma, há diversas outras maneiras de pensar os problemas contemporâneos compartilhados. Mas elas exigem que consigamos construir zonas de contato entre aparatos cognitivos, zonas das quais nenhuma das partes sairá da mesma forma que entrou. São esses tipos de encontro que precisam acontecer mais.
(2022, p. 20)
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HARAWAY, D. J.; GOODEVE, T. N. Fragmentos: quanto como uma folha. entrevista com Donna Haraway. Mediações - Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 20, n. 1, p. 48–68, 2015. DOI: 10.5433/2176-6665.2015v20n1p48. Disponível em: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/23252.
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HARAWAY, D. Uma enorme e pretensiosa ninhada: Donna Haraway sobre verdade, tecnologia e resistência à extinção. GARRAFA. Vol. v. 20, n. 57 (2022): Janeiro - Junho. p. 20 – 40. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/garrafa/article/view/55723/pdf
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