Colonialismo digital, racismo e acumulação primitiva de dados
Fichamento do artigo Colonialismo digital, racismo e acumulação primiriva de dados1 de Walter Lippold e Deivison Faustino.
Abstract
O colonialismo digital não é uma nova fase, mas um dos traços objetivos do atual estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista e representa um largo passo em direção à uma reificação, cada vez mais profunda, da nossa experiência e senso de realidade, elevando a um novo patamar, a objetificação e mercantilização das relações, das mais simples às mais complexas. Refere-se, em primeiro lugar, à uma nova partilha do mundo que atualiza o imperialismo e o subimperialismo, ao reduzir o chamado Sul global a mero território de mineração extrativista de dados informacionais ou a consumidores retardatários de tecnologia. No entanto, atualiza e viabiliza novas formas de exploração, opressão e controle político, ideológico e subjetivo, a partir de um fenômeno aqui nomeado como acumulação primitiva de dados. Ambos os processos, marcados por um assombroso desenvolvimento tecnológico a serviço da apropriação e exploração do valor, redefinem e ao mesmo tempo, são possibilitados por, por novas expressões de racismo e da racialização. Assim, problematizamos a relação entre o colonialismo digital e o chamado racismo algorítmico a partir da apresentação de categorias como acumulação primitiva de dados, fardo do nerd branco, racialização digital.
Perguntas do artigo: implicações das novas tecnologias e relação com colonialismo e racismo
As perguntas que se perseguem no presente artigo são: quais as implicações do incremento tecnológico às formas clássicas de exploração capitalista do trabalho e, sobretudo,qual é a relação desses processos econômicos e tecnológicos com o colonialismo e com o racismo? Como já descrevemos em outro lugar (Faustino e Lippold, 2022), o colonialismo digital é um dos traços objetivos do atual estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista e representa um largo passo em direção à uma reificação, cada vez mais profunda, da nossa experiência e senso de realidade, elevando a um novo patamar, a objetificação e mercantilização das relações, das mais simples às mais complexas. Refere-se, em primeiro lugar, à uma nova partilha do mundo que atualiza o imperialismo e o subimperialismo, ao reduzir o chamado Sul global a mero território de mineração extrativista de dados informacionais ou a consumidores retardatários de tecnologia. (p. 58)
Acumulação primitiva de dados
No entanto, atualiza e viabiliza novas formas de exploração, opressão e controle político, ideológico e subjetivo, a partir de um fenômeno aqui nomeado como acumulação primitiva de dados. Ambos os processos, marcados por um assombroso desenvolvimento tecnológico a serviço da apropriação e exploração do valor, redefinem e ao mesmo tempo, são possibilitados por, por novas expressões de racismo e da racialização. (p. 58)
Tendências do colonialismo digital: neocolonialismo e colonialismo de dados
Sua existência se materializa a partir de duas tendências: A primeira é a emergência de uma nova partilha territorial do globo terrestre entre os grandes monopólios da indústria da informação: as chamadas Big Techs, majoritariamente concentradas no Vale do Silício, mas não apenas. Partilha essa que atualiza o imperialismo, o subimperialismo e neocolonialismo tardio ao reduzir o chamado Sul global a mero território de mineração extrativista de dados informacionais. (p. 58)
A segunda tendência, também nomeada como colonialismo de dados, é aquela que subsume cada vez mais a vida humana, o ócio, a criatividade, a cognição e os processos produtivos às lógicas extrativistas, automatizadas e panópticas do colonialismo digital. Não se trata, aqui, de uma simples alteração dos ritmos de vida ou mesmo da percepção humana pela introdução de novas tecnologias, como poderia se presumir, mas, sim, da manipulação intencional da cognição humana por grandes corporações empresariais a partir dessas tecnologias com vistas à ampliação da acumulação de capitais. Como veremos, ambas as expressões de colonialismo, não se materializam sem se apropriar e ressignificar o racismo moderno em termos digitais. Assim, problematizamos a relação entre o colonialismo digital e o chamado racismo algorítmico a partir da apresentação de categorias como acumulação primitiva de dados, fardo do nerdbranco, racialização digital. (p. 58)
Colonialismo digital como traço do capitalismo contemporâneo em Kwet
O colonialismo digital é um dos traços objetivos do atual estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista. Para o sociólogo sul-africano Michael Kwet, se caracteriza pelo uso da tecnologia digital para a dominação política, econômica e social de outra nação ou território. Se o colonialismo clássico era baseado na ocupação de terras estrangeiras para a instalação de infraestruturas (militares, transporte, comunicaçãoe administrativa) apropriação e expropriação de recursos, controle do território e da infraestrutura, extração violenta de trabalho, conhecimento e mercadorias e do exercício do poder estatal para viabilizar a pilhagem de um determinado território, hoje:
[...] as “veias abertas” do Sul Global de Eduardo Galeano são as “veias digitais” que cruzam os oceanos, conectando um ecossistema tecnológico de propriedade e controlado por um punhado de corporações baseadas principalmente nos EUA. Alguns dos cabos de fibra óptica transoceânicos são equipados com fios de propriedade ou alugados por empresas como Google e Facebook para promover sua extração e monopolização de dados. O maquinário pesado de hoje são os farms de servidores em nuvem dominados pela Amazon e pela Microsoft que são usados para armazenar, agrupar e processar big data, proliferando como bases militares para o império dos EUA (KWET, 2021)
(p. 58-9)
Big techs como elemento central da (re)produção capitalista
As chamadas Big Techs–grandes corporações do ramo da tecnologia digital –representam um elo fundamental desteestágio de acumulação capitalista ao controlarem amplos setores econômicos e se apresentarem, cada vez mais, como elemento central à produção e reprodução capitalista. Não é possível ignorar, no entanto, o papel decisivo oferecido pelas pequenas startups AdTechs (Adverstising. + Technology), MarcTechs (Marketing + Technology) e FinTechs + Technology) no setor. Embora essas empresas girem em torno das Big techs, elas têm autonomia maior de funcionamento e liberdade para criatividade, inclusive, para burlar legislações locais.As corporações do Vale do Silício juntas valem mais de 10 trilhões de dólares. Das 10 empresas mais valiosas do mundo, somente duas (Aramco, Hathaway) não atuam diretamente ou indiretamente no ramo da indústria digital. Só as chamadas Big Five (Apple, Amazon, Alphabet, Microsoft e Facebook) [[ GAFAM, FAAMG ]] somaram quase 900 bilhões em receita em 2019.Este faturamento cresceu 25% em relação ao período anterior à pandemia (SHIMABUKURO, 2021). (p. 59)
Hipertrofia das atividades logísticas e fabricalização da cidade [na indústria 3.0]
O que Ferrari constatou é que as atividades logísticas se hipertrofiaram devido às "novas" necessidades de produção e circulação capitalista. O just in time foi a máxima deste processo que fabricalizou as cidades ao transformar suas vias em grandes esteiras produtivas de forma a viabilizar a apropriação do valor em uma nova escala. Para que o Mercado Livre ou a Amazon, por exemplo, possam entregar suas mercadorias em um curto tempo, estasmercadorias precisam, em primeiro lugar, serem produzidas fisicamente –pelos já conhecidos processos de exploração de trabalho –, mas, em segundo lugar, precisam estar “disponíveis”, em tempo e quantidade, o mais próximo possível dos potenciais compradores. (p. 60)
Uberização do trabalho como intensificação da fabricalização
Por outro lado, a uberização do trabalho, por exemplo, intensificou os efeitos da fabricalização à patamares inéditos ao permitir a disponibilidade just in time de outra mercadoria fundamental à valorização do valor: a força de trabalho. Óbvio também, como destaca Ferrari (2008), que o desenvolvimento tecnológico informacional permitiu ao capital a ampliação astronômica do grau de previsibilidade do que, quando, ondee por quemdeterminado produto será comprado. Mas as possibilidades de exploração que se abriamcom essas inovações tecnológicas não pararam aí. (p. 60-1)
Intensificação e redefinição da luta de classes com as tecnologias digitais e a Indústria 4.0
O posterior desenvolvimento das tecnologias digitais no interior da assim chamada Indústria 4.0redefiniu, novamente, a luta de classes, ao complexificar qualitativamente –sem contudo, superar -os processos de dominação econômica, política, social e racial de determinados ou territórios, grupos ou países. Tomemos como exemplo a principal fonte de receita da Amazon. (p. 61)
Amazon como exemplo
Fundada em 1994 como empresa de varejo, foi se convertendo –especialmente a partir do lançamento do Amazon Web Services –AWS –em 2004 –em uma plataforma mundial de computação em nuvem sob demanda entrelaçado a um ecossistema de vendedores, desenvolvedores, empresas e criadores de conteúdo. Atualmente, o segmento que mais contribui para os lucros da empresa não é o varejo físico ou online, mas sim o AWS, o segmento que mais cresce em sua receita líquida, com uma participação de 12,5 % (o que equivale a US $ 35,0 bilhões). Ao mesmo tempo, o seu lucro operacional contribui com mais de US $ 9,2bilhões, ou seja, 63,3% da receita operacional total da Amazon (2019)é obtida pela fusão e, ao mesmo tempo, elevação à outro patamar da relação entre produção, circulação e consumo, extrapolando a meradisponibilidade logística de seus produtos físicos ou digitais (p. 61)
Aproximação entre corporações (Tesla, Elon Musk) e autoritarismo de direita (Bolívia, Amazônia).
Do outro lado do ringue monopolista, Elon Musk, dono da Tesla, empresa que viu seu valor de mercado avançar mais de 300% durante a pandemia, respondeu em seu twitter à uma crítica que o associava ao golpe orquestrado pelos EUA contra o presidente boliviano Evo Morales com a seguinte frase: "vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso". A Bolívia é detentora da maior reserva de lítio do mundo, matéria prima fundamental para a produção de baterias da Tesla.Musk continua sua senda de apoiar golpes e regimes autoritários de extrema-direita, que perseguem, torturam e exterminam povos indígenas, militantes, ativistas ambientais, como no caso brasileiro, onde recebeu a Medalha de Honra ao Mérito da Defesa. Musk reuniu-se com o presidente da República para tratar da proteção da Amazônia e de proporcionar conexões e acessos via seu sistema starlink de satélites, já usado em prol do regime ucraniano. (p. 61)
Intensificação da exploração e valorização via capital financeiro com a emergência das Big Techs
Ao que tudo indica, a recente eclosão das Big Techs apresenta novidades a esse processo de exploração e apropriação do valor [[ teorizado por Lênin em relação ao Imperialismo ]]: o enlace entre o mundo da tecnologia e o mundo das finanças -o que não é, em si, uma novidade desde o início do capitalismo –ganha novas expressões a partir de uma dada articulação entre datificação, financeirização e neoliberalismo que elevam as Big Techsa condição deespinhas dorsais (Backbones) das inovações financeiras constituindo uma espécie de "teia de aranha digital-financeira" (MORAES, 2021). (p. 62)
Como explica o engenheiro Roberto de Moraes (2021):
a Microsoft, que está próximo de passar a Apple na liderança de valor de mercado entre as Big Techs, rumo aos US$ 3 trilhões, divulga que a maioria das grandes empresas do ocidente, de váriossetores da economia, dependem do seu “Workspace”, para continuar operando, existindo e capturando valor da economia real. É aí que as Big Techs encontram ponto de tangência para se imbricar à economia real no e-commerce, indústria 4.0, indústria das informações e mídia e também nos bancos digitais-fintechs, moedas digitais, tokenização (divisão de propriedades com uso de metadados e registros no blockchain), etc
(p. 62)
Colonialismo digital não como regressão feudal, mas como desenvolvimento ampliado capitalista
Mas as inovações não se encerram aí. Embora o desenvolvimento das forças produtivas representem, efetivamente, a ampliação das capacidades humanas em seu trajeto não linear e complexo de afastamento das capacidades naturais, a inversão produtivaoperada pela necessidade valorização do valor faz, no atual estágio de acumulação capitalista,com que as forças produtivas se apresentem, cada vez mais, como aquilo que Mészáros (1989) descreveu como forças destrutivas, ampliando ainda mais a submissão da vida à um tempo estranhado e cada vez mais violento sob o qual parece perdermos o controle (POSTONE, 2014).É verdade que, neste contexto, o Vale do Silício se apresenta como a representação encantada e mitológica de um suposto "novo capitalismo" (Durand, 2020:30), mas não se observa, portanto, regressão tecnificada à formas feudais de dominaçãomas, sim, intensificação do controle e da predação monopolista própria ao capitalismo, mesmo em seu período industrial. A concorrência, a democracia e o bem-estar social capitalista sempre conviveram com violência e o genocídio colonial, longe dos olhos atentos de importantes críticos ocidentais (Faustino e Lippold, 2022). O colonialismo digital, no entanto, ocorrem em um estágio de desenvolvimento e -ao mesmo tempo) destruição capitalista em que essa violência passa a ser percebida também nos centros capitalistas, curiosamente, como degeneração do capitalismo ou regressão feudal, quando é, na verdade, expressão de seu desenvolvimento ampliado. (p. 62)
Acoplamento entre corporações e Estados nacionais
Assim como no velho imperialismo, não era possível aosgrandes conglomerados renunciarem aos Estados Nacionais e, sobretudo, de seu poder de soberania e tirania geopolítica. Este traço, não apenas permanece, mas é agravado por novas tecnologias de espionagem, golpes de Estado, controle social e morte. Mas há aqui uma tendência à privatização de algumas dessas funções que passam a ocorrer em paralelo ou até em disputa com os aparelhos estatais. Não se trata, como previu Antônio Negri em seu Império (2001),de uma derrota do Estado capitalista pelas grandes empresas transnacionais, mas de uma nova modalidade de coabitação promíscua entre eles. Como explica Moraes (2021), "o poder de monopólio não apenas de emissão de moedas e meios de circulação, mas de registro de fluxos de negócios e de garantia, que antes só o Estado exercia". (p. 63)
Colonialismo como nova partilha (geográfica, de classe e racial)
Como veremos mais à frente, esta nova partilha mantém, intensifica ou atualiza as "velhas" tendências da divisão racial e geográfica do trabalho, não apenas por concentrar o poder no chamado "Norte Global" mas, sobretudo, por reproduzir uma racialização do acesso e da exclusão dessas tecnologias. Se o desenvolvimento das Tecnologias da Informação permitiu a milhões de alunos assistirem suas aulas em casa, em segurança, durante a pandemia, dados do observatório Brasil Digital revelam que 4,1 milhões de estudantes não conseguiram participar das aulas virtuais por falta de infraestrutura adequada em um país como o Brasil. O estudo ainda evidencia uma intensa desigualdade regional, de classe e racial de acesso entre os estudantes que conseguiram assistir às aulas. Esta desigualdade, explicitamente racializada, será continuamente explorada como possibilidade de maximizar a exploração de valor ou mesmo a expropriação (acumulação primitiva) de dados. Vejamos como isso se dá, concretamente. (p. 63)
Colonialismo de dados como subsunção da vida cotidiana e processos cognitivos ao universo digital (via extração de dados)
Trata-se de uma verdadeira acumulação primitiva digital. Uma tendência à colonização, ou melhor, subsunção, da vida cotidiana e de seus processos cognitivos ao universo digital. Um largo passo, aparentemente sem volta, em direção à uma ciborguização cada vez mais profunda danossa experiência e senso de realidade de forma que a objetificação e mercantilização das relações, das mais simples às mais complexas. Esse violento extrativismo, no entanto, não é um mero discurso de poder, mas o reflexo de uma disputa pelas novas matérias primas indispensáveis à ampliação e expropriação das frações de mais valor: os dados. (p. 63-4)
Sobre valor dos dados e o duplo aspecto que ele inaugura: obtenção, controle e processamento de dados e neocolonislismo sobre os big data
Independentemente das posições que se assumam no debate [[ sobre os dados serem ou não uma commodity como o petróleo ]], há um consenso em relação ao seu valor elevado, quando comparado ao velho e valioso “ouro negro". O ponto que se quer destacar aqui é que esse novo ativo tem movimentado os setores mais dinâmicosdo capital, mas as disputas por sua extração seguem os antigos padrões coloniais monopolistas. Trata-se, de um lado, de novas disputas pela obtenção, controle e análise de dados, coletados com ou sem o consentimento de seus produtores pelas grandes corporações e do outro lado, da velha disputa neocolonial pelos recursos materiais necessários à produção e reprodução da big data. (p. 64)
Novo extrativismo ~ neocolonialismo tardio e divisão de trabalho
A grande questão que não se pode perder de vista é que esse novo extrativismo não dilui, mas intensifica e é intensificado pelos efeitos do neocolonialismo tardio (Yeros e Jah, 2019), ampliando ainda mais os antigos fossos criados pela divisão internacional do trabalho. Como afirma a jurista guatemalteca Renata “tecnologias de informação e comunicação (TIC), a inovação em inteligência artificial e a capacidade de implantar sistemas e infraestrutura rapidamente em mercados emergentes estão concentradas em apenas alguns países, que agora estão em uma corrida para ser o número um” (PINTO, 2018, p.16). (p. 64)
A jurista argumenta que esse grandecapital − muitas vezes marcado pela fusão do setor público e privado em joint ventures com vistas à dominação global –se configura pela grande concentração (mais uma vez, monopolista) de alguns elementos ausentes nas economias em desenvolvimento como:
- os recursos de capital (propriedade e controle de cabos e servidores e dados) e os recursos intelectuais (os técnicos e instituições de pesquisa mais avançados);
- Uma arquitetura jurídica nacional e internacional que limita a capacidade de inovação dos países em desenvolvimento (como o sistema de patentes e direitos autorais, por exemplo); e
- A disponibilidade de capital financeiro para projetar e investir em pesquisa pesada de desenvolvimento ou, sobretudo, explorar as formas inovadoras que emergem,nestes contextos.
(p. 64)
Em 2013, Schmidt e Cohen declararam [[ em relação ao lobby estadunidense ]]: “O que a Lockheed Martin foi para o século XX, as empresas de tecnologia e cibersegurança serão para o século XXI” (ASSANGE, 2015, p. 40). A outra faceta do colonialismo digital é a sua incontornável materialidade. A divisão de trabalho própria do neocolonialismo tardio impõe drásticos limites geográficos até para as relações de produção. A democracia e o bem estar social, tão importantes à reprodução capitalista nas metrópoles, nunca foram viáveis nas colônias, territórios rasgados pela violência em estado bruto e a racialização. Essa dimensão também se agrava com o advento do colonialismo digital. (p. 67)
Fibra ótica (neocolonialismo) ~ ferrovias (colonialismo)
É possível comparar a distribuição mundial de fibra óptica com a expansão imperialista das linhas ferroviárias, no século XIX. Nos dois casos a exportação de capitais que viabiliza tal monta só foi possível mediante a partilha colonial do mundo de forma a inserir de maneira subordinada os territórios colonizados ou recém independentes na economia mundial. Não se tratou de uma transferência horizontal de tecnologia –desenvolvida, inclusive a partir das matérias primas e do trabalho excedente extraídos e apropriados desses territórios –mas de uma expansão da malha de comunicação que permitiu converter os povos o resto do mundoem fornecedores de matérias primas bruta e, ao mesmo tempo, consumidores de bens manufaturados. (p. 64-5)
Criptomoedas, computação quântica ~ extração de recursos naturais
A suposta "era informacional" segue, na verdade, pautada pelos velhos limites materiais de produção. A límpida e supostamente imaterial mineração de criptomoedas, embora dispense a impressão de cédulas e a sua valorização crescentemente especulativa (D-D') o seu lastro é garantido pelo fato de que o descobrimento de novos blocos depende do cálculo realizado por supercomputadores milionários criados especialmente para esse fim e reunidos em fazendas de mineração que consomem mais energia elétrica que alguns países europeus. Ao lado -e como condição de existência -da corrida entre a IBM e a Google pela chamada supremacia quântica por uma tecnologia computacional que supere a lógica binária dos supercomputadores atualmente existentes, existe uma demanda crescente por minérios como o coltan, formado por columbita -de onde se extrai nióbio -e tantalita, pois são base para condensadores eletrônicos e supercondutores. (p. 65)
Evangelismo tecnológico na África
É professado um verdadeiro evangelismo tecnológico, é em conferências como o CyFy África, como a ocorrida em Tânger, em 2019, onde o mantra de aceleração, “inovação” e crença inexorável no uso de I.A.s, são promovidos por governos, empresas e mídia. África, um continente rico em dados, dados que estariam ao livre dispor do colonialismo digital, assim como no passado se considerou a terra e os minérios, além da força detrabalho africana. (p. 65)
Disputas sobre o 5G/IoT no Brasil (EUA e China como colonizadores digitais)
Outro trágico exemplo é a política do Governo Brasileiro diante da "guerra comercial" entre EUA e China em torno das tecnologias do chamado 5G, em que o Brasil não tem protagonismo algum, exceto na escolha dos novos “colonizadores digitais”. Como afirma Patrícia Maurício et al.:
O Brasil tem um imenso mercado consumidor, no entanto, a disputa pela hegemonia da Internet das Coisas (loT) guarda semelhancas com o pacto colonial em que o pais exportava matéria prima e importava produtos manufaturados. Se na época do Brasil Colonia víamos sair do país cana-de-acúcar e metais preciosos, agora o que se fornece são milhões de “nativos” dependentes desses “manufaturados pósmodernas”. EUA e China säo “colonizadores digitais”. Em vez de desbravarem mares turbulentos e desconhecidos com bussolas e astrolabios, os novos colonizadores navegam com aplicativos de ultima geraçäo, que fornecem aos colonizados a oportunidade do consumo e a sensacäo de pertencimento a uma aldeia hiperconectada. Essa aldeia hiperconectada forma também uma Agora Digital, um espaco que pode ser definido como o da vida social, em que säo realizados em várias arenas debates sobre os mais diversos objetos de interesse.
(p. 66)
Google e NSA (EUA) em relação ao Brasil
Assange (2015) alerta para os perigos em termos de espionagem política e industrial por parte do Google, que está totalmente alinhada com os interesses imperialistas estadunidenses. As denúncias feitas por Snowden deveriam ter aberto os olhos dos brasileiros e do mundo sobre a ingerência do imperialismo na produção de petróleo nacional e até mesmo no lawfareque derrubou Dilma Rousseff. Sérgio Moro obteve formação nos Estados Unidos e acesso a informações oriundas de espionagem via NSA. O lavajatismo destruiu o capitalismo nacional, e adequou os interesses geopolíticos aos ditames da política exterior dos EUA, além de tirar Lula da eleição, prendendo o ex-presidente. (p. 66)
Materialidade do colonialismo digital
Como já foi dito anteriormente, não há softwares sem hardwares. Falta dizer que também não há hardwaresem ouro, lítio, columbita e tantalita, coltan, cobalto, entre outros. Dado a importância da indústria eletrônica para os modos de existir do capitalismo contemporâneo, é fácil concluir que a sua reprodução seria inviável sem o acesso a essas matérias primas. Novamente, observa-se uma das facetas mais violentas do colonialismo digital uma vez que aqui, o extrativismo não evoluiu desde as antigas colônias do século XIX. (p. 67)
Outro elemento relacionado à materialidade concreta do colonialismo digital se apresenta através do controle monopolista da infraestrutura de hardware e software de redes, data centers, servidores e controle da força de trabalho, do cognitariado e precariado, que são a carne a ser moída para a acumulação atual, programando e pedalando, sendo colocados como biorobôs que executam ordens emitidas por uma voz robotizada, controlada pela I.A. da plataforma. Uma ciborguização alienante, onde o conhecimento evanesce e é proclamado o reino dataísta, o fetiche pelos dados e a morte da narrativa. (p. 68)
Colonialismo digital ~ inovação
Por fim, e não menos importante, é a ligação do colonialismo digital com as políticas de investimento e inovação. O acesso a joint venture capitalists em start ups, em disrupção -“a palavra predileta das elites digitais” (MOROZOV, 2018, p. 27), pesquisa, colonização das universidades em prol dos ditames das corporações big tech, moldando pesquisadores já na sua formação, “parcerias” entre as empresas e universidades, fundações público-privadas. (p. 68-9)
Colonialismo digital -> colonialismo de dados (fabricalização da cidade e proletarização da vida privada)
A já mencionada fabricalização da cidade, de que fala Ferrari é, também, como a própria socióloga identificou, uma proletarização da vida privada, em suas dimensões individuais e, sobretudo subjetiva. Atualmente, estamos assistindo à uma uberização da vida cotidiana através da monetização da nossa imagem cotidianamente capturada por aparelhos cada vez mais presentes em todos os momentos (Faustino e Lippold, 2022). É, pois, neste ponto que o colonialismo digital se converte em uma forma de dominação que tem sido nomeada como i-colonialismou colonialismo de dados. A esse respeito, Achille Mbembe (2013) chega a afirmar que o rebaixamento reificador que reduziu aos povos africanos à condição de homem moeda é, agora, universalizada pelo desenvolvimento tecnológico e vivida por todos os usuários informacionais. (p. 69)
Luta entre humanos x máquinas -> humanos (detentores) x humanos (não-detentores). [Mas não é também entre máquinas produzidas pela classe dominante e contra-maquinarias da classe dominada?]
Podemos supor que a racialização, como discurso que fixa os sujeitos nas representações objetificantes criadas pelo colonialismo, aparece aqui como enclausuramento de toda humanidade pelas máquinas que outrora criou. Ocorre, como enfatizamos (Faustino e Lippold, 2022), que a verdadeira e principal contradição não se dá entre humanos e máquinas, mas sim, entre humanos (detentores) e humanos (não-detentores) dos meios e possibilidade de produção da vida. O que não significa que a luta de classes não tenha no desenho e emprego das máquinas uma dimensão fundamental dessa luta (de classes). Veremos, pois, que essa luta também é incontornavelmente racializada (p. 69)
Lacuna na literatura de colonialismo digital/de dados sobre racismo digital.
O silêncio da literatura especializada em digital colonialism, i-colonialism ou data colonialism, sobre o racismo no universo digital é ensurdecedor. Se o racismo foi e continua sendo a base para as velhas e novas formas de colonialismo, nos perguntamos, como nos foi possível o advento de toda uma literatura sobre COLONIALISMO (digital) que não discute o racismo? Embora estejamos tratando, fundamentalmente, de um arsenal teórico muito mais crítico que esse, a revisão bibliográfica que sustenta esse trabalho nos fez perguntar se esse campo de estudos não é, em sua grande maioria, contaminado pelo fardo do nerd branco. Frantz Fanon nos lembra que o racismo não se expressa apenas sobre as ofensas abertamente violentas ou estereotipadas, mas, sobretudo, na suposta universalização dos referenciais particulares europeus. Uma espécie de identitarismo branco permite ao pensamento crítico se supor radical sem, contudo, enfrentar as dimensões raciais da exploração de classe (FAUSTINO, 2021a; 2018). (p. 69)
Valor/preço como expressão do racismo
O que procuramos chamar a atenção aqui, é que a tendente universalização da “condição negra” narrada por Mbembe (2013) e muitas vezes mobilizada para problematizar o colonialismo de dados, não substituiu a diferenciação fenotípica promovida pelo racismo antinegro. Em resultado, uma vez que todos tendemos (cada vez mais) a ser reduzidos à mercadoria, encontramos no racismo um elemento ideológico que diferencia o preço de cada mercadoria e, sobretudo, os critérios que definem e autorizam quais delas podem serdescartadas e quais, mesmo quando supérfluas, não são passíveis de tais redução. Falamos em preço, ao invés de valor, porque o tempo de trabalho socialmente necessário empreendido por um trabalhador negro é o mesmo que o de um branco, já o seu preço no mercado de trabalho não. Mais do que isso, a experiência colonial nos desafia a equacionar a exploração capitalista para além da simples exploração da mais valia, como prevista pela teoria do valor. (p. 69-70)
Denise Ferreira Silva (2017) retoma os cálculos de Marx a respeito do valor do linho na revolução industrial para direcionar reflexão sobre o valor para a exploração escravista, não contabilizada no cálculo da mais valia. Esse quantum de valor obtido pelo trabalho não pago e não mensurado representa uma parte fundamental da riqueza produzida na modernidade. Ainda assim, a máxima cantada por Elza Soares não se desatualizou e, em consequência, a carne mais barata do mercado continua sendo a carne negra, justamente a que mais contribuiu para o enriquecimento humano genérico a partir de sua exploração em estado bruto. Se há uma colonização digital, ergue-se como prioridade a investigação sobre como e em que medida a racialização se presentifica neste contexto (p. 70)
Essa investigação vem sendo feita por uma rede sólida -embora ainda pequena -de pesquisadores alocados em diversas partes do mundo. Destacamos, neste sentido, o brilhante trabalho do Professor Tarcízio Silva(2019), Joy Buolamwini (2018), a Professora Safiya Umoja Noble (2018), entre outros. Como já foi discutido, algoritmos são produções humanas [[?]] e, portanto, atravessados por tradições, valores subjetivamente e intersubjetivamente partilhados (SILVA, 2019), mas, sobretudo, com finalidades historicamente determinadas.
[...] grupos de cientistas, teóricas e ativistas da comunicação e tecnologia apontaram os processos pelos quais a construção tanto das tecnologias digitais de comunicação quanto da ideologia do Vale do Silício são racializadas, a partir de uma lógica da supremacia branca[...] (SILVA, 2020, p.129)
(p. 70)
Tarcízio sobre racismo algorítmico
Em uma palestra oferecida ao NEABI do Campus Avançado Ubá, no ano de 2021, o pesquisador Tarcízio Silva falou dos cinco pilares do racismo algorítmico.
- O primeiro é o que ele chama de Looping de feedback: o modo como sistemas de inteligência artificial promove vieses de discriminação racial já existentes na sociedade. Cita como exemplos os sistemas de reconhecimento de objeto (aprendizado de máquinas) e imagens que tendem a incorporar os vieses raciais e fazer associações racializadas.
- O segundo pilar é o que ele chama de humanidade diferencial: o modo como o racismo acaba promovendo o grupo hegemônico em detrimento de minorias, consolidando uma espécie de distribuição racial do sistema tecnológico.
- O terceiro pilar, segundo argumenta, é o paradoxo entre invisibilidade e hipervisibilidade. Baseado nos estudos de Joy Buolamwini sobre a disparidade interseccional, ele argumenta o racismo pode se manifestar, de um lado, no não reconhecimento correto do traço de mulheres negras nos app de reconhecimento lúdico oufuncionais, e do outro lado, a hipervisibilidade negra nas formas de dominação e controle. Como exemplo, Silva lembra que 90,5% das pessoas presas por reconhecimento facial no Brasil são pessoas negras.
- O quarto pilar é a colonialidade global no negócio da tecnologia. Segundo Tarcízio, grandes empresas de big tech colonizam infra-estruturas tecnológicas em alguns países menos conectados, de forma a restringir o acesso desses povos ao seu monopólio. Um exemplo famoso é a oferta de internet gratuita e de baixa qualidade pela google e o facebook para países com baixíssima conexão como Gâmbia, Sri Lanka, no entanto, o preço cobrado é que as pessoas só podem acessar os produtos dessas mesmas empresas ao invés de terem o acesso ilimitado à internet. Essa proposta chegou a ser apresentada pelo Facebook ao Brasil, mas foi rejeitada pela então Presidente Dilma.
- O quinto pilar é o que Silva chama de colonialidade de campo. O pesquisador observa como as disciplinas do campo da informação tendem a negligenciar a presença do racismo em seus objetos de estudo e formação de profissionais, professores e novos pesquisadores.
(p. 70-1)
Questionamento sobre a noção "racismo algorítmico" por esconder agências humanas (confrontar com Latour e Galloway sobre dominação nas agênciase não-humanas)
Este aspecto é importante para o argumento aqui assumido. Se os códigos são, mesmo em sua tendente automação, padrões socialmente determinados, o termo “racismo algorítmico” não tenderia a escamotear a autoria do racismo, transferindo-a para os códigos enquanto oculta os seus programadores, esse sim humanos formados e informados por dadas relações sociais de poder? (p. 71)
Proposta dos termos "racialização codificada" ou "racialização digital"
Acreditamos, portanto, que a noção de racialização codificada ou racialização digital possa ser mais abrangente para dar conta da explicitação do contexto material de desenho dos algoritmos de forma a evidenciar a seletividade racial dos cargos técnicos em empresas de programação, a distribuição social desigual de prestígio entre produtores de conteúdo digitais na internet (PROPMARK, 2020) e codificação naturalizada dos discursos e estética racistas nas mídias sociais e bancos de imagem digitais. (p. 71)
Convém destacar, ainda, a racialização codificada em aplicativos de reconhecimento facial, ao não identificarem os traços negros com precisão (NOBLE, 2018) e, sobretudo, uma certa eugenia política (SILVEIRA, 2020) presente no “aprendizado de máquinas”. A eugenia se materializa tanto na utilização estética e cultural branco-ocidental como parâmetro de humanidade quanto na exclusão ou desigualdade do acesso às tecnologias informacionais. (p. 71)
Questionamento sobre os limites do ativismo em plataformas digitais (hegemônicas)
A pergunta que cabe fazer é: em que medida o ativismo quando restrito às grandes plataformas privadas − fornecidas pelos grandes monopólios informacionais − representa realmente uma subversão da ordem estabelecida ou apenas mais uma estratégia de ampliação de tempo de permanência dos usuários em seu interior, com vistas às já anunciadas finalidades de extração e venda de dados? Poderiam as ferramentas do Senhor desmantelar a casa grande? (LORDE, 1984). (p. 72)
Tensão monopolismo-democratização da tecnologia no capitalismo
Parece que no capitalismo, toda revolução tecnológica enfrenta esse aparente antagonismo entre privatização monopolista versus democratização. Alguns exemplos são a prensa mecânica criada na China por Bi Sheng, no século XI, depois difundida para Europa por Gutenberg e as tentativas de controle da tecnologia do livro, pela Igreja através do index librorum prohibitorum, e pelo capitalismo, com a criação da propriedade intelectual, copyright. Do mesmo modo, a tecnologia da radiodifusão, tão bem analisada por Brecht em sua teoria sobre o rádio. (p. 72)
Ideologia californiana do vale do silício
A ideologia que imperou no mundo digital foi aquela que emergiu das entranhas das corporações do Vale do Silício, que segundo Foletto do BaixaCultura, na Introdução de Ideologia Californiana (BARBROOK; CAMERON, 2018, p.5) consiste em
[...] uma improvável mescla das atitudes boêmias e antiautoritárias da contracultura da costa oeste dos EUA com o utopismo tecnológico e o liberalismo econômico. Dessa mistura hippie com yuppie nasceria o espírito das empresas .com do Vale do Silício, que passaram a alimentar a ideia de que todos podem ser “hip and rich” –para isso basta acreditar em seu trabalho e ter fé que as novas tecnologias de informação vão emancipar o ser humano ampliando a liberdade de cada um e reduzir o poder do estado burocrático.
(p. 72-3)
Uma das principais contradições da ideologia californiana é o culto ao livre mercado, e o anti-estatismo, sendo que grande parte dos investimentos na internet foram estatais, via militares e universidades. Além disso, professa a crença ideológica no Robison Crusoé capitalista. A imagem de um hacker solitário lutando contra o sistema, idealizado pela literatura cyberpunk, não deixa de reproduzir a ideologiado self made man e do do it yourself da ideologia californiana. O hacktivismo atual compreende a força do agir coletivo, da coletividade (BARBROOK; CAMERON, 2018). (p. 73)
O elemento que uniu nova direita e nova esquerda na costa oeste, é a defesa de uma democracia jeffersoniana, com ideias oriundas de um escravista e latifundiário da Virgínia, que assentou a liberdade dos brancos sobre a escravização negra. Para Thomas Jefferson, o negro é um ser humano, mas antes de tudo é uma propriedade, e o direito sagrado dapropriedade não poderia ser violado (BARBROOK; CAMERON, 2018). As contradições envolvendo classe e raça na costa oeste, continuaram a se manifestar na ideologia californiana, pois a classe virtual foi formada por brancos, que em geral se retiram para seus bairros vigiados e segregados dos negros e hispânicos. Não podemos deixar de lembrar das palavras de Fanon, acerca da compartimentação racializada do espaço colonial, a cidade do colono e a cidade do colonizado. (p. 73)
Dialética mestre-ciborgue escravo-robô
Cria-se uma dialética do mestre ciborgue edo escravo robô, uma releitura de Hegel poderia nos apoiar nesse processo de desenvolvimento contraditório. Jefferson em sua propriedade escravista produziu uma série de tecnologias para intermediar seu contato com os escravizados. Os brancos da classe sonham com a tecnoutopia do “pós-humano”, “[...] uma manifestação biotecnológica dos privilégios[...]” (BARBROOK; CAMERON, 2018) de classe. Não só o desejo de otimizar desempenho de modo ciborguiano, mas uma manifestação das bases da ideologia atual veiculada nas redes sociais, que reforçam a busca de auto satisfação narcísica, através de terapias alternativas, misticismo e um egocentrismo que engole o outro em um Grande Eu. (p. 73-4)
Por outro lado, a fantasia de criar o escravo perfeito, o robota, que em língua eslava significa escravo, trabalho forçado. Assim, como slave, escravo se origina na palavra eslavo, devido a escravização dos povos eslavos, pelo Sacro Império Germânico (I Reich).
Apesar destas fantasias, os brancos da Califórnia continuam dependentes de seus colegas humanos de pele mais escura para trabalhar em suas fábricas, colher seus cereais, cuidar de suas crianças e cultivar seus jardins. Após os tumultos de Los Angeles, eles cada vez mais temem que esta “subclasse” vá um dia exigir sua libertação. Se escravos humanos não são totalmente confiáveis, então escravos mecânicos terão de ser inventados. A busca pelo Santo Graal da “Inteligência Artificial” revela este desejo pelo Golem –um forte e leal escravo cuja pele tem a cor da terra e cujas entranhassão feitas de areia. Como nas histórias de robôs de Asimov, os tecno-utópicos imaginam ser possível obter mão-de-obra como a escrava por meio de máquinas inanimadas. Porém, apesar de a tecnologia poder armazenar ou amplificar o trabalho, ela não pode nunca remover a necessidade de os humanos inventarem, construírem e manterem estas máquinas em primeiro lugar. Trabalho escravo não pode ser obtido sem escravizar alguém. Por todo o mundo, a Ideologia Californiana foi aceita como uma forma otimista e emancipadora de determinismo tecnológico. Porém, esta fantasia utópica da costa oeste depende de sua cegueira frente à –e dependência de –polarização social e racial da sociedade em que nasceu. (BARBROOK; CAMERON, 2018, p.33)
(p. 74)
Fardo do nerd branco
O fardo do nerd branco é uma reabilitação da ideologia do White Man’s Burden, plasmada no “poema” do branco inglês Rudyard Kipling, lançado na ocasião da conquista das Filipinas pelos Estados Unidos. Suas bases em termos de ideologia são: 1. racismo pseudocientífico; 2. destino manifesto estadunidense, 3. mission civilisatrice europeia. O homem branco é alavancado como o universal e telos em-si da civilização, e por ter alçado tal lugar, tem que iluminar as trevas infamantes do colonizado, como afirmou Memmi (1977). O colonialismo é um bem supremo para os bárbaros e selvagens, a Europa diz introduzir a higiene, os hospitais, as estradas, as técnicas e tecnologias. Bondade, brancura, branquidade e branquitude: os colonizados deveriam agradecer as “benesses” da civilização. Nada mais justo que roubar suas terras e minérios, exaurir a força de trabalho e domesticar a napalm, baionetada e metralhadas suas “criancices”, pois o colonizado sempre é tratado como infantil. (p. 74)
Assim como o racismo religioso, baseado na leitura cristão medieval da Maldição de Cam, foi reconfigurado e rearticulado pelo racismo pseudocientífico, o nerd branco reabilita o fardo do homem branco. Iniciativas oriundas das big techs do Vale do Silício querem ajudar o sul do mundo, principalmente o continente africano:
No livro A nova era digital,os senhores Schmidt e Cohen assumem alegremente o fardo do ‘nerd branco’. O texto é cheio de figuras de pele escura convenientes e hipotéticas: pescadores congolenses, designers gráficos de Botsuana, ativistas anticorrupção de San Salvador ecriadores de gado analfabetos do povo massai no Serengeti... todos obedientemente convocados para demonstrar as propriedades progressistas dos telefones do Google conectados à cadeia de fornecimento de informações do império ocidental[...]. O livro é uma obra funestamente seminal, e nenhum dos autores parece ter a capacidade de enxergar, e muito menos de expressar, a titânica perversidade centralizadora que estão construindo. (ASSANGE, 2015).
(p. 74-5)
Capitalismo > fase neocolonialista tardia > colonialismo digital (acumulação primitiva de dados, racialização digital, fardo do nerd branco)
O colonialismo digital é um fenômeno inserido dentro da fase neocolonialista tardia (Yeros e Jha, 2020) do modo de produção capitalista. Para compreendê-lo como totalidade concreta fez-se necessário correlacionar os elementos e as propriedades que compõem o fenômeno, ou seja, a acumulação primitiva de dados, a racialização digital e o fardo do nerd branco. Partimos de questionamentos sobre a constante ausência de análises do racismo nos estudos sobre colonialismo digital e buscamos em Fanon aportes críticos sobre tecnologia, colonialismo e descolonização. A visão de uma potência benevolente e neutra que emana do Silicon Valley desdobra-se da ideologia californiana: é a sua versão imperialista, incluindo, portanto, as contradições de classe e raça na West Coastestadunidense. (p. 75)
Aspecto destrutivo do atual estágio da acumulação capitalista
As tecnologias informacionais têm expulsado -a uma velocidade exponencial -cada vez mais trabalho vivo do interior das fábricas e que há no atual estágio de acumulação capitalista, uma tendente conversão das forças produtivas em forças destrutivas. É sabido que em momentos de crise, a queima de trabalho morto através de guerras é uma forma de dinamizar a economia. Talvez, a atualidade do presente momento é que a queima de trabalho vivo também passa a ser lucrativa, ainda que pareça antieconômica. Ela pode ser lucrativa desde que devidamente controlada em territórios malditos, delimitados por grandes interesses imperialistas de acumulação. O racismo segue tendo uma função econômica bastante atual aqui: distinguir aqueles que podem ser queimados,sem comoção e implicações éticas daqueles cujo a dor será tomada como parâmetro universal. (p. 75-6)
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LIPPOLD, W.; FAUSTINO, D. Colonialismo digital, racismo e acumulação primitiva de dados. Germinal: marxismo e educação em debate, v. 14, n. 2, p. 56–78, 7 out. 2022.
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