Maquinações
Experimentações teóricas, fichamentos e outros comentários descartáveis

As imagens técnicas

Rafael Gonçalves
03/05/2023
Arlindo Machadoimagemimagem técnicafotografiatecnociênciatecnologias da informaçãofichamento

Fichamento do texto "As imagens técnicas: da fotografia à síntese numérica"1 de Arlindo Machado.

Edit (12/10/2024): Adiciona páginas.

Fabulação sobre a criação interna de imagens

Partamos de uma premissa que poderá parecer óbvia para alguns e absurda para outros: existe, em algum lugar dentro de nós, uma instância produtora de imagens, uma espécie de cinematógrafo interior, por meio do qual nossa imaginação toma forma. (p. 220)

O debate sobre a natureza dessas imagens que denominamos — à falta de um termo melhor — “internas” movimenta hoje vastos setores do pensamento científico, num espectro que vai da neurobiologia à psicanálise. Porém, pouco se sabe sobre elas e há mesmo quem duvide de que sejam de fato imagens. Mas isso não importa aqui. O que importa é que, seja qual for o estatuto que conferirmos a essa instância geradora a que alguns dão o nome de o imaginário, nós não temos nenhum meio de acesso a ela. (p. 220)

A natureza nos deu um aparelho fonador, por meio do qual podemos exteriorizar os conceitos que forjamos em nosso íntimo e pelo qual podemos também nos comunicar uns com os outros, mas não nos deu, desgraçadamente, um dispositivo de projeção incorporado ao nosso próprio corpo, para que pudéssemos botar para fora as imagens de nosso cinema interior. (p. 220-1)

Já que estamos tratando de imaginário, façamos um esforço de imaginação. Tentemos visualizar um ser extraterreno, biologicamente mais evoluído do que nós, em cuja testa haveria algo assim como um tubo iconoscópico, uma pequena tela de televisão na qual ele poderia projetar suas imagens interiores e exibi-las aos seus interlocutores. Dois seres dessa natureza poderiam se comunicar simplesmente “trocando” imagens entre si. Mas nós não. Como não temos esse órgão em nosso corpo, como não podemos projetar para fora as imagens que forjamos dentro de nós, dependemos quase sempre da palavra para traduzir e exteriorizar as paisagens do imaginário. Esse fato talvez explique por que a psicanálise deposita uma fé quase cega na palavra falada como porta de acesso àquilo que ela chama de inconsciente. E talvez explique também, de um lado, o estatuto privilegiado da palavra na maioria esmagadora dos sistemas filosóficos (por muitos considerada a própria encarnação do pensamento) e, de outro, a desconfiança, o preconceito e até a má vontade desses mesmos sistemas filosóficos em relação à imagem, condenada, desde Platão, à doença do simulacro. {222} É que a imagem, não vindo diretamente do homem, pressupõe sempre uma mediação técnica para exteriorizá-la, ela é sempre um artifício para simular alguma coisa a que nunca podemos ter acesso direto. (p. 221-2)

Definição de uma 'imagem técnica'

Grosso modo, o senso comum define tais imagens como aquelas cujo modo de enunciação pressupõe algum tipo de mediação técnica. O exemplo mais óbvio e mais citado é a fotografia, uma vez que a sua produção depende fundamentalmente da mediação de, no mínimo, três dispositivos técnicos: a câmera, o sistema óptico da objetiva e a película fotossensível. Imagens técnicas são também as imagens sintetizadas em computadores e essa é uma premissa mais ou menos inquestionável, uma vez que a produção de tais imagens depende largamente do concurso de toda uma parafernália tecnológica: computadores, scanners, placas gráficas, além de aplicativos de modelação, editores ou processadores de imagem e algoritmos gráficos de toda espécie. O computador parece hoje marcar bem a diferença das imagens técnicas em relação a todas as outras imagens até então conhecidas, na medida em que conduz essa diferença aos seus limites mais extremos. (p. 222)

Tecnicidade inerente a toda imagem produzida

Tudo isso parece indicar um conceito de precisão cristalina. “Imagem técnica” seria toda representação plástica enunciada por ou através de algum tipo de dispositivo técnico. Mas — e aqui começa a complicação — existirá alguma imagem, exceto aquelas que forjamos dentro de nós mesmos, que não decorra da intervenção de um dispositivo técnico? Ao longo da história da arte, já nos defrontamos com técnicas pictóricas semiartesanais estreitamente associadas à criação artística, como é o caso da gravura, da litografia, da serigrafia e de outros procedimentos do gênero. Seria o caso de nos perguntarmos também se o gesto em si da pintura dita artesanal não pressupõe já uma infinidade de mediações técnicas, desde a preparação das tintas e sua combinação, o tratamento da tela, o recurso a modelos matemáticos de representação (como é o caso da perspectiva renascentista) até a própria técnica de pintar, que pressupõe um aprendizado longo e difícil de modelos formais dados pela cultura em que se insere o pintor. (p. 222)

A técnica, portanto, está longe de representar um traço distintivo dentro das artes visuais ou a expressão de um fenômeno singular dentro da história da cultura, mesmo porque toda imagem materializada em algum tipo de suporte é o resultado da aplicação de algum tipo de técnica de representação pictórica. A ideia, mais ou menos generalizada, de que a criação artística seria a expressão da experiência vivencial de um sujeito enunciador apenas dá conta de parte do problema. A experiência sozinha não rende obras visuais ou audiovisuais, se ela não estiver, ao mesmo tempo, associada a um know how específico, se ela não se deixar moldar pelos artifícios da representação. Talvez essa seja a condição de toda e qualquer obra criativa, mas, no campo específico das artes visuais, é possível que esse fato possa ser explicado, entre outras coisas, pelo imenso abismo existente entre as imagens que concebemos em nossa imaginação, como agentes destiladores da experiência vivencial, e as que podemos materializar e socializar com os meios e as técnicas disponíveis. (p. 223)

Isso deve ser posto logo de início para limpar um pouco o terreno e situar corretamente a inserção da técnica no universo das artes em geral e das artes visuais em particular. Quando se fala de imagens, é impossível pensar a estética independentemente da intervenção da técnica. Dependendo do sistema filosófico invocado, o campo semântico implicado pela primeira pode ser mais vasto do que o da segunda, mas, de qualquer maneira, jamais se pode ignorar o papel determinante jogado pelas técnicas de produção na realização dos fenômenos estéticos, sob pena de reduzir qualquer discussão estética a um delírio intelectualista completamente ignorante da realidade da experiência produtiva. Nenhuma leitura dos objetos visuais ou audiovisuais recentes ou antigos pode ser completa se não se considerar relevantes, em termos de resultados, a “lógica” intrínseca do material e das ferramentas de trabalho, bem como os procedimentos técnicos que dão forma ao produto final. Não nos esqueçamos de que o termo grego original para designar “arte” era téchne; isso significa que, nas origens, a técnica já implicava a criação artística, ou que, em outros termos, havia já uma dimensão estética implícita na técnica. (p. 223)

Imagem técnica como aquela que opera uma cisào entre imagem interna e imagem produzida pela mediação técnica

Naturalmente, quando hoje falamos em imagens técnicas, estamos nos referindo quase sempre a um campo de fenômenos audiovisuais mais específico e também mais típico de nosso tempo, em que a intervenção de tecnologias pesadas afeta {224} substancialmente a natureza mesma da imagem, um campo de fenômenos em que a intervenção das máquinas ópticas faz inserir a produção de imagens dentro de paradigmas formadores que nos parecem novos ou inéditos, embora nem sempre o sejam necessariamente. Por “imagens técnicas” designamos em geral uma classe de fenômenos audiovisuais em que o adjetivo (“técnica”) de alguma forma ofusca o substantivo (“imagem”), em que o papel da máquina (ou de seja lá qual for a mediação técnica) se torna tão determinante a ponto de muitas vezes eclipsar ou mesmo substituir o trabalho de concepção de imagens por parte de um sujeito criador, o artista que traduz as suas imagens interiores em obras dotadas de significado numa sociedade de homens. Nesse sentido, vamos introduzir um certo “desvio” em nossa argumentação e restringir, apenas para fins operativos, o conceito de “imagem técnica” a um campo de fenômenos visuais e audiovisuais em que a intervenção da técnica produz uma diferença no universo das imagens, marcando muitas vezes uma cisão, uma distância em relação às imagens do homem, às suas imagens interiores. Veremos, ainda assim, que o que hoje se passa no universo das imagens, da fotografia aos simulacros digitais, não é algo propriamente novo, mas o aprofundamento de uma tendência que tem pelo menos 500 anos de história e que podemos caracterizar grosseiramente como a assunção do artifício como destino mesmo da imagem. (p. 223-4)

Origem das imagens técnicas no Renascimento italiano ("objetividade" e "coerência" de imagens cientificamente verossímeis)

De fato, imagens técnicasa stricto sensu começam a aparecer pela primeira vez no Renascimento italiano, quando os artífices da matéria plástica se põem a construir dispositivos técnicos destinados a dar “objetividade” e “coerência” ao trabalho de produção de imagens. É nessa época que os artistas começam, por assim dizer, a rejeitar as suas imagens interiores, a encará-las como enganosas e desviantes, ao mesmo tempo em que se ancoram no conhecimento científico como forma de garantir a credibilidade, a verossimilhança, o valor mesmo da produção imagética como forma de conhecimento. Dürer estuda anatomia humana para poder pintar com maior exatidão os seus modelos; Leonardo estuda o movimento das águas e dos ventos para representar a dinâmica do mar e das ondas; Brunelleschi e Piero della Francesca devoram avidamente toda a geometria euclidiana, crentes de que ela deveria dar a linguagem básica da construção do visível. Por outro lado, Bosch foi o último dos grandes videntes medievais a retirar sua delirante iconografia do cadinho de imagens interiores. Depois dele, a imagem se torna cada vez mais {225} calculada, arquitetada, conceitualizada, construtiva, encarnando a própria utopia de um total controle do visível. A partir do Renascimento, a paisagem visualizada no quadro advém cada vez mais sóbria, encorpada, matematicamente controlada, regida por conceitos de simetria e de funcionalidade. Em todos os sentidos, trata-se de um efeito de conhecimento, primado do intelecto sobre a mão ou, mais precisamente, um empenho na direção de uma imagem cientificamente verossímil, a própria essência do que agora estamos chamando de imagem técnica. (p. 224-5)

Pirâmide visual e perspectiva artificialis

Para a consecução de tais objetivos, constrói-se um número incontável de máquinas e inventam-se diversos procedimentos de representação destinados a garantir a objetividade da coisa representada. Era comum, no Renascimento, encontrar no ateliê do artista aparelhos de pintar baseados no princípio da tavoletta de Brunelleschi e constituídos basicamente de um ponto de referência para o olho do pintor (apenas um olho; o outro deveria ser tapado, pois, como se sabe, a imagem renascentista era monocular) e um vidro translúcido para a projeção das imagens. Olhando do ponto de referência, o artista “copiava” sobre o vidro translúcido à sua frente os modelos e objetos colocados no lado posterior. Tal era a materialização da célebre “pirâmide visual” que definia o ato pictórico no Renascimento: o ponto de referência era o vértice ou “centro visual” da pirâmide, ao passo que o vidro correspondia a uma interseção vertical do objeto geométrico, personificando o quadro (a tela) onde deveriam ser projetadas as imagens das coisas compreendidas dentro da pirâmide. O artista obtinha assim um esboço da imagem, com dados tomados do próprio objeto representado, de modo que bastava transferi-lo depois para a tela e cobri-lo de cores para que a obra ganhasse forma acabada. A imagem obtida por intermédio de tal dispositivo era a seguir “corrigida” por uma aplicação do código da perspectiva artificialis, cuja função básica era sugerir uma ilusão de profundidade sobre a tela plana, mas pressupunha também toda uma ideologia da objetividade e da verossimilhança decorrentes de sua base “científica”. De fato, a perspectiva renascentista, tal como foi sistematizada por Leo Batista Alberti em seu De Pictura (1443), era encarada pelo homem do Quattrocento como um sistema de representação plástica baseado nas leis “objetivas” do espaço formuladas pela geometria euclidiana e, como decorrência de tal fato, acreditava-se que ela deveria nos dar a imagem mais justa e fiel da realidade visível. (p. 225)

Câmera obscura e objetiva

É também no Renascimento que se generaliza o uso da camera obscura como dispositivo destinado a reproduzir o mundo visível da forma mais exata possível. A objetividade da imagem obtida por esse dispositivo parecia inquestionável ao homem daquele período: afinal, era a própria realidade que se fazia projetar de forma invertida na parede da câmera oposta ao orifício por onde entrava a luz, enquanto o papel do artista consistia apenas em fixar essa imagem com pincel e tinta. Ou seja, a imagem se originava da própria realidade representada e não da imaginação do artista. A câmera levava ainda a vantagem assessória de produzir automaticamente a perspectiva renascentista, só que a imagem por ela codificada, apesar de inteiramente focada, apresentava sérios problemas de definição, além de exibir uma curvatura nas partes mais afastadas do centro, conforme se pode constatar ainda hoje nas câmeras de “buraco de agulha”. No século XVI, aparecem as objetivas, inventadas por Daniele Barbaro, que consistiam num sistema de lentes côncavas e convexas destinadas a refratar a informação luminosa que deveria penetrar na camera obscura para corrigir os problemas decorrentes da aplicação estreita da perspectiva renascentista. Junte-se os aparelhos de produzir retratos com base no fenômeno da camera obscura, a técnica da perspectiva artificialis e as objetivas de Barbaro e já temos resolvidos nos séculos XV e XVI todos os problemas ópticos necessários para a produção “automática” de imagens, e essa tecnologia toda será responsável por boa parte da iconografia desse período, além de dar a diretriz metodológica e construtiva até mesmo para a produção plástica mais artesanal (Machado 1984). (p. 226)

Ideiais de objetividade e de beleza no renascimento

O De Pictura de Alberti, além de aparecer na história da arte como a primeira obra literária a tomar a pintura como objeto de teoria, coincide de ser também, muito sintomaticamente, a mais antiga reflexão que se conhece sobre a imagem técnica. Lá estão claramente delineadas as duas máximas da iconografia renascentista: a objetividade (“imitação da natureza”) e a beleza (configuração ideal) (Alberti 1989). A busca da objetividade tem um sentido claro no Renascimento: trata-se de um empenho no sentido de colocar fora do homem a produção de imagens e livrá-la do peso deformante das imagens interiores. A imagem “objetiva” é a imagem que vem de fora (“da natureza”), aquela que se pode apreender com máquinas e instrumentos derivados da investigação científica, e a sua principal virtude é estar imune à subjetividade humana, às imagens interiores, que deformam e adulteram a realidade {227} visível. Mas a objetividade por si só é insuficiente como procedimento pictórico; é preciso que as imagens objetivamente captadas e representadas por dispositivos ópticos sejam corrigidas de suas imperfeições por uma aplicação da geometria, que dá a exata proporção das coisas e dos seres no espaço. A perspectiva corrige os dados imagéticos diretamente tomados da realidade (“da natureza”) e os conforma a modelos matemáticos de beleza, não esquecendo que “beleza”, para o homem renascentista, significa reconhecimento da configuração ideal dos objetos, pressupondo portanto o conhecimento de sua estrutura e do seu relacionamento harmônico com todos os outros objetos da cena. (p. 226-7)

A fotografia é filha legítima da iconografia renascentista. Não apenas porque, do ponto de vista técnico, ela se faz com os recursos tecnológicos dos séculos XV e XVI (camera obscura, perspectiva monocular e objetivas), mas sobretudo porque a sua principal função, a partir do século XIX, quando sua produção comercial se generaliza, será dar continuidade ao modelo de imagem construído no Renascimento, modelo esse marcado pela objetividade, pela reprodução mimética do visível e pelo conceito de espaço coerente e sistemático, espaço intelectualizado, organizado em torno de um ponto de fuga. A descoberta das propriedades fotoquímicas dos sais de prata no século XIX representou um incremento substancial desse modelo, pois permitiu substituir a mediação humana (o pincel do artista que fixa a imagem projetada no interior da câmera) pela mediação química do daguerreótipo ou da película gelatinosa. Ou seja, a fotografia retirou da cena pictórica o último gesto artesanal, representado pela mão do homem, abrindo a possibilidade de uma produção inteiramente automática e tecnológica da imagem, dando nascimento, portanto, a uma imagem da qual a intervenção do homem pode ser excluída. Ninguém exprimiu melhor do que André Bazin o espanto e o fascínio dessa imagem objetivada: (p. 227)

Pela primeira vez — afirma ele —, entre o objeto inicial e a sua representação nada se interpõe a não ser outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma automaticamente sem a intervenção crítica do homem, segundo um determinismo rigoroso. (...) Todas as artes estão fundadas sobre a presença do homem; só na fotografia contamos com a sua ausência. Ela age sobre nós como fenômeno natural, como uma flor ou um cristal cuja beleza é inseparável de suas origens vegetais ou telúricas. (Bazin 1981, p. 13) (p. 227)

Imagem especular ~ música tonal (resiste a sua desconstrução pela arte moderna)

Na fotografia, no cinema, na televisão e mesmo nos novos produtos audiovisuais propostos pela informática, há uma predominância quase absoluta da imagem especular consistente do século XV, da qual não conseguimos nos desprender mesmo depois de quase um século de desconstrução dessa imagem pela chamada arte moderna. De certa forma, o que ocorre no universo das artes visuais não difere muito do que se passa em outras esferas da criação, como na música, por exemplo, em que o modelo da tonalidade clássica resiste bravamente a toda e qualquer tentativa de superação ou de relativização. (p. 228)

Conservadorismo da visão mesmo nas chamadas "novas imagens"

Da mesma maneira, a visão do homem contemporâneo permanece em larga escala determinada por modelos formativos do passado e as imagens técnicas jogam um papel fundamental na manutenção desse impasse. Isso quer dizer que, contrariando um pouco um certo discurso corrente sobre o tema, as imagens tecnológicas, as “novas imagens” como se costuma dizer com mais frequência, nem sempre anunciam necessariamente um progresso no modo de perceber, enunciar e compreender o mundo, nem sempre correspondem ao que poderíamos denominar uma visão propriamente contemporânea. (p. 228)

O mais sofisticado spot publicitário exibido na televisão, apesar de construído com recursos tecnológicos de última geração, nos quais se incluem captação em película cinematográfica, pós-produção em vídeo de alta definição e inserções de imagens modeladas e animadas em computador, em geral, nada mais faz que celebrar uma iconografia historicamente datada, tomada como modelar e repetida até a exaustão pelas sucessivas gerações. (p. 228)

Anamorfoses no renascentismo

Mas a história da arte, felizmente, não é coerente nem linear. Já no Renascimento, no momento mesmo em que as técnicas da perspectiva monocular eram fundadas e aperfeiçoadas, métodos engenhosos de encurtar, alongar e deformar a evolução dos raios visuais em direção ao ponto de fuga estavam sendo elaborados. Como consequência, podia-se fazer com que um pequeno espaço se dilatasse a dimensões infinitas, ou que grandes distâncias fossem reduzidas a um ínfimo qualquer, ou ainda que espaços curvos, irregulares e disformes fossem invocados por uma deformação proposital dos raios visuais que transitam na pirâmide de Alberti. Jurgis Baltrusaitis, estudioso maior dessas perversões do código perspectivo renascentista, chama tais deformações de anamorfoses e vislumbra para elas uma fértil linha de evolução {229} dentro da história da arte. As anamorfoses não são mais do que desdobramentos perversos do código perspectivo, mas o efeito por elas produzido resulta francamente irrealista, “uma multiplicação de mundos artificiais que atormentam os homens de todas as épocas” (Baltrusaitis 1977, p. 4). Embora tenham nascido mais ou menos junto com o sistema projetivo renascentista, as anamorfoses constituem a sua negação explícita, “uma contínua advertência dos elementos aberrantes e artificiais da perspectiva” (Baltrusaitis 1977, p. 2). (p. 228-9)

Dupla história das imagens a partir do renascimento (abstracionismo moderno x imagem técnica)

Pode-se então dizer que, a partir do século XV, a arte caminhará em duas direções simultaneamente: na direção dos cânones oficiais de objetividade e coerência e na direção já de uma desconstrução de toda essa positividade, sob a forma de anamorfoses. Dependendo da época e do lugar, uma direção pode predominar sobre a outra. Boa parte dos efeitos de instabilidade e desproporção da arte barroca, por exemplo, provém de sutis deformações anamórficas da cena renascentista e esses efeitos serão em seguida aprofundados na arte romântica, quando as imagens internas do artista voltarão a povoar a tela com seu poder desagregador. A perversão do sistema perspectivo clássico pelas anamorfoses desembocará, já no final do século XIX, em toda a aventura da arte moderna, explicitamente uma arte da negação dos postulados renascentistas de objetividade e coerência, a ponto de chegar a uma abolição radical da figura especular por meio da abstração. Na posição inversa, entretanto, situam-se as imagens técnicas: quando o impressionismo e o cubismo desferem o golpe mortal no modelo de representação do século XV, a fotografia e logo em seguida o cinema surgem como alternativas para repor e perpetuar a figuração que havia sido colocada em crise. No século XX, vamos aprender a conviver simultaneamente com dois modelos iconográficos: o modelo renascentista, mantido vivo pela imagem técnica, e o modelo “moderno” de que as artes plásticas serão as principais articuladoras. (p. 229)

Experiências marginais de promoção de uma visão contemporânea na fotografia (e no cinema) e a resistência da imagem técnica a tal tentativa

Naturalmente, os dois modelos não são excludentes, eles não aparecem como monolitos indissolúveis, a fronteira exata entre eles é difícil de ser traçada. Toda uma geração de fotógrafos — em que se incluem nomes como os de Moholy-Nagy, Anton Bragaglia, Bill Brandt, Aleksandr Rodtchenko, Edward Weston e os brasileiros Geraldo de Barros e José Oiticica Filho — tentou atualizar a iconografia fotográfica para uma sensibilidade contemporânea, de modo a inserir a arte da fotografia dentro de paradigmas de nosso tempo. Muitos desses fotógrafos mantiveram contatos {230} estreitos com artistas plásticos ligados a movimentos artísticos contemporâneos, quando não desenvolveram eles próprios uma atividade pictórica paralela. O mesmo ocorreu esporadicamente no cinema, quando criadores como Fernand Léger, Marcel Duchamp, Luis Buñuel e Oskar Fischinger, entre outros, esforçaram-se para desviar a história do cinema para fora da linha evolutiva baseada na imagem naturalista e nos efeitos ilusionistas da narrativa literária do século XIX. Tais exemplos, todavia, resultaram sempre marginais dentro da história da fotografia e do cinema, mesmo porque a imagem fotográfica (que constitui também a base do cinema) se mostrou demasiado resistente a qualquer gesto desconstrutivo e raras vezes se deixou moldar de fato por uma vontade criadora verdadeiramente moderna. Pode-se mesmo dizer que a imagem fotográfica encontra-se marcada por uma fatalidade figurativa que a conecta irremediavelmente com a iconografia renascentista e que só mesmo um gesto extremo de radicalidade, com repercussões na própria engenharia da câmera, pode subverter de forma consequente. (p. 229-30)

Imagem eletrônica [digital] como revolução técnicaa (vídeo-arte)

A partir dos anos 60, porém, a emergência de um novo meio mudou radicalmente o destino da imagem técnica. O aparecimento do vídeo, mais precisamente a sua disponibilidade comercial, que lhe permitiu chegar às mãos de uma geração de artistas na sua maioria oriundos das artes plásticas e da música contemporânea, constituiu um dado novo, que não demoraria a provocar uma ruptura sem precedentes no universo das imagens técnicas. Diferentemente da imagem fotoquímica, a imagem eletrônica é muito mais maleável, plástica, aberta à manipulação do artista, resultando portanto mais suscetível às transformações e às anamorfoses. Pode-se nela intervir infinitamente, alterando suas formas, modificando seus valores cromáticos, desintegrando suas figuras. Não por acaso, a arte do vídeo, que se constitui tão logo os recursos técnicos se tornam disponíveis, definir-se-á rapidamente como uma retórica da metamorfose: em vez da exploração da imagem consistente, estável e naturalista da figura clássica, ela se definirá resolutamente na direção da distorção, da desintegração das formas, da instabilidade dos enunciados e da abstração como recurso formal. Mesmo antes do videotape estar disponível para a intervenção artística, criadores como Wolf Vostell e Nam June Paik já produziam vídeo-arte alterando os circuitos de aparelhos de televisão ou distorcendo suas imagens com a ajuda de ímãs poderosos. Logo em seguida, a descoberta do efeito de feedback, que permitiu gerar imagens sem necessidade de registro fotográfico, e a invenção dos {231} sintetizadores de vídeo, que possibilitaram criar toda uma iconografia informal sem necessidade do concurso da câmera, tudo isso fez com que a vídeo-arte desse o salto necessário de atualização da imagem técnica em relação ao estágio já alcançado pelas artes visuais em outros domínios. (p. 230-1)

A vídeo-arte será a primeira forma de expressão, no universo das imagens técnicas, a produzir uma iconografia resolutamente contemporânea e a lograr uma reconciliação das imagens técnicas com a produção estética de nosso tempo, ou pelo menos a primeira a fazê-lo de uma forma programática, transformando essa busca na sua própria razão de ser, e não como uma investigação marginal, conduzida na contramão das formas dominantes. O alcance e a profundidade dessa revolução dentro da história das artes visuais e audiovisuais não foram ainda devidamente equacionados, sobretudo porque os critérios de avaliação predominantes no universo das imagens técnicas derivam ainda de cânones figurativos das artes fotográfica e cinematográfica. Mas o impacto da arte do vídeo não pode ser avaliado dentro dos limites estreitos da própria imagem técnica; ele deve, antes, ser avaliado na perspectiva mais abrangente da história da arte como um todo, de que o vídeo é agora uma de suas principais instâncias criadoras. (p. 231)

Cisão entre artistas e profissionais da imagem técnica. Virtualidade do vídeo.

É curioso observar que os profissionais formados no universo da imagem técnica (fotógrafos, cineastas) ficam desconcertados quando se iniciam na experiência do vídeo. Esses profissionais operam com uma expectativa de qualidade técnica que é moeda corrente no nível da imagem fotoquímica, mas que resulta fora de propósito nos domínios do vídeo. Já os artistas de formação musical ou oriundos do universo da pintura artesanal se relacionam de forma muito mais produtiva com o vídeo, pois percebem que nele se pode resgatar a mesma liberdade e a mesma flexibilidade de tratamento que se encontram em seus domínios específicos. Aquilo justamente que os profissionais da imagem técnica consideram um “defeito” da imagem eletrônica — sua virtualidade, sua baixa definição, sua labilidade cromática e as anamorfoses de suas figuras — é encarado pelos outros como qualidade positiva, a diferença qualitativa do vídeo em relação aos demais meios técnicos, aquilo justamente que o coloca em sintonia com a arte de nosso tempo. (p. 231)

Imagem digital (calculabilidade, realismo conceitual)

Já a imagem digital, a imagem gerada ou processada em computador, apresenta uma posição ambígua dentro desse panorama. Num certo sentido, trata-se de um retorno aos cânones renascentistas de coerência e objetividade. Mais que um retorno, {232} a imagem digital aparece como uma verdadeira hipertrofia dos postulados estéticos do século XV, na medida em que ela realiza hoje o sonho renascentista de uma imaginação puramente conceitual, em que a imagem seria encarada e praticada como uma instância de materialização do conceito. De fato, os algoritmos de visualização invocados no universo da computação gráfica permitem restituir sob forma visível (perceptível) o universo de pura abstração das matemáticas, ao mesmo tempo em que possibilitam também descrever numericamente as propriedades da imagem. Como consequência, eles dão origem a imagens ainda mais calculadas, coerentes e formalizadas do que a pintura do Quattrocento. E uma vez que se pressupõe existir algum tipo de isomorfismo entre as formas da matemática e as estruturas do universo, há também uma certa vontade mimética conformando as imagens digitais, um certo sentido de realismo que, de alguma maneira, dá continuidade ao princípio do registro fotográfico. Tudo isso pode ser constatado no grosso da produção imagética computadorizada, que se mostra cada vez mais como uma simulação do realismo fotográfico. Há, todavia, uma diferença: a partir do computador, o “realismo” resulta visivelmente desencarnado, sem qualquer vinculação direta com a paisagem registrada. O realismo praticado na era da informática é um realismo essencialmente conceitual, elaborado com base em modelos matemáticos e não em dados físicos arrancados da realidade visível. (p. 231-2)

A intervenção do computador compreende, portanto, uma certa margem de ambiguidade: o fato de ele dispensar inteiramente a mediação da câmera para a enunciação da imagem, de um lado, e as imensas possibilidades de manipulação e metamorfose que ele abre, por outro, relativizam bastante o seu apetite de realismo fotográfico. Pode-se, com o computador, simular a fotografia, se é isso o que se quer, mas pode-se também criar mundos absolutamente irreais, mundos regidos por leis arbitrárias, até o limite da abstração total. Pode-se também desintegrar imagens anteriormente enunciadas por câmeras, de modo a aproximar a imagem digital dos processos formativos de natureza anamórfica, mais típicos do vídeo. Obras conhecidas tais como as de Harold Cohen, Yoichiro Kawaguchi e Michel Bret já demonstram hoje e de uma forma eloquente as imensas possibilidades estéticas da imagem digital. (p. 232)

Computador (criação/síntese) e vídeo (destruição/abstração)

Atualmente, computador e vídeo, nos seus modos de apropriação mais usuais, correspondem a duas estéticas radicalmente diferentes, que poderíamos caracterizar grosseiramente como sendo respectivamente a da criação e a da destruição. A arte do vídeo {233} está marcada, antes de mais nada, por uma ruptura com os cânones pictóricos do Renascimento e por uma retomada do espírito demolidor das vanguardas históricas do começo do século, fazendo voltar a sua fúria desconstrutiva sobretudo contra a figura realista que o modelo fotográfico logrou perpetuar. Já a síntese numérica da imagem nos reconcilia novamente, senão com o efeito ilusionista da figuração renascentista, pelo menos com o seu caráter construtivo e a sua resoluta fusão de arte e ciência. De um lado, portanto, temos a total destruição, a negação como energia propulsora da obra, desagregação, anamorfose, implosão do visível. De outro, a utopia de um total domínio do visível, de um controle absoluto do processo gerador da imagem, até mesmo nos seus detalhes mais microscópicos. À alquimia luminosa do vídeo e à sua extravagância visual, a computação gráfica responde com uma paisagem sóbria, matematicamente ordenada, em que os jogos de luzes, sombras e reflexos não passam de dados puramente teóricos, elementos de uma gramática, de uma sintaxe ou de uma retórica a priori estabelecidas. “Elástica, aquosa, sujeita a todas as transformações e anamorfoses, fortemente deliqüescente, fantasmática e conduzida, às vezes, pelos artistas, aos limites mesmo do visível (...) ou do palpável (...), a imagem de vídeo parece se opor totalmente a essa outra imagem, dita ‘de síntese’, imagem estritamente calculada, nervurada, armada, arquitetada e encorpada nos mínimos detalhes” (Mèredieu 1988, p. 6). (p. 232-3)

Situação contemporânea: síntese das duas tendências em híbridos. Ex: foto que para além de espelhar o real, deve ser editada

O mais desconcertante, porém, é que hoje um número cada vez maior de trabalhos são feitos mesclando as duas alternativas e fazendo nascer daí um diálogo tenso e fértil entre as expressões atuais mais avançadas da imagem técnica. É como se, após 500 anos de ditadura da imagem especular consistente do Renascimento e após 100 anos (pelo menos) de contestação desse primado pelas vanguardas históricas, o universo das imagens caminhasse agora em direção a uma síntese, uma síntese que, todavia, não deixa de apontar para sua natureza necessariamente híbrida, resultado de influências distintas e (às vezes) contraditórias. Nesse sentido, a situação atual das imagens técnicas não para de surpreender. De um lado, os mais recentes algoritmos de computação gráfica prometem simulações absolutamente “realistas”, a ponto de poder substituir objetos do mundo real, cenários naturais e até mesmo atores de carne e osso por réplicas digitais tão convincentes quanto as imagens técnicas anteriores, resultantes de um registro fotoquímico realizado pela câmera. Por outro lado, porém, as atuais imagens fotográficas são a tal ponto {234} manipuladas por processadores computadorizados que a própria credibilidade (ingênua, é verdade) no poder de revelação da fotografia entra hoje num processo de degringolamento irreversível. A tendência atual é encarar o registro fotográfico efetuado pela câmera como a mera obtenção de uma matéria-prima que deverá ser posteriormente trabalhada e transformada por algoritmos de tratamento da imagem. “Fotografia” agora é o nome que se dá ao resultado de um processo de edição e não à marca deixada pela luz sobre uma superfície fotossensível. Em resumo: enquanto certos produtos da computação gráfica aspiram ao (antigo) poder de convicção da fotografia fotoquímica, a fotografia se converte ela própria em vídeo (as próprias câmeras fotográficas já são agora eletrônicas), como que anunciando uma era de indiferenciação fenomenológica entre imagens técnicas e artesanais, objetivas e subjetivas, internas e externas. (p. 233-4)


  1. MACHADO, A. “As imagens técnicas: da fotografia à síntese numérica”. In: MACHADO, A. Pré-cinemas & pós-cinemas. 4a Edição. Campinas: Papirus, 2004. p. 220-249.