Maquinações
Experimentações teóricas, fichamentos e outros comentários descartáveis

7000 a.C. - Aparelho de captura

Chomel, Dictionnaire économique, 1732, artigo “Perdrix”
Rafael Gonçalves
17/09/2023
Gilles DeleuzeFélix GuattariSamir Aminestadocapitalismoaparelho de capturacapturasocialismotrabalhodinheiroMil Platôs

Fichamento do capítulo "7000 a.C. - Aparelho de captura"1 do livro Mil Platôs de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

Os dois polos do Estado: imperador mágico e rei-jurista

Acondicionamento (pela captura) e organização (pela criação de uma lei) da máquina de guerra.

                (intensivo)
              máquina de guerra
                     |
                     |
                     |
  ___________________|__Estado__________________________
  | imperador        |           rei                   |
  | mágico ---------------------jurista                |
  | (despótico,                 (moderno,              |
  | mais-valia de código        mais-valia de fluxo    |
  | = sobrecodificação,         = organização dos      |
  |                             fluxos descodificados?,|
  | laço/nó,                    contrato?,             |
  | servidão maquínica,         sujeição social,       | 
  | oriente)                    ocidente)              |
  |____________________________________________________|
                 (extensivo)

Capitalismo

O capitalismo estaria onde? "Axiomática geral", "organização ecumênica", "ordem econômica que poderia passar sem o Estado", "grito contra o Estado" estaria no polo do Ocidente, ou antes, substituiria ambos os polos por uma outra coisa? que outra coisa? Estados como modelos de realização de uma axiomática geral.

Me parece que há um argumento de que existe um único movimento dinâminco que passa pela captura e contrato, servidão e sujeição. Na prática "a semiótica é mista" (do Estado arcaico, de sua forma desenvolvida feudal e da axiomática capitalista, ou então a axiomática capitalista como mistura), mas também, todos expressam um mesmo e único movimento de captura extensiva que se oporia talvez ao dinamismo intensivo da máquina de guerra (embora ainda assim parcialmente, como árvores que brotam do rizoma, há máquinas de guerra capturadas pelo Estado, e vice e versa).

Arqueologia dos Estados imperiais mostra que a agricultura surge do Estado, o campo surge da cidade

Não é mais o estoque que supõe um excedente potencial, mas o inverso. Não é mais o Estado que supõe comunidades agrícolas elaboradas e forças produtivas desenvolvidas; ao contrário, ele se estabelece diretamente num meio de caçadores-coletores sem agricultura nem metalurgia preliminares, e é ele que cria a agricultura, a pequena criação e a metalurgia, primeiro sobre seu próprio solo, depois os impõe ao mundo circundante. Não é mais o campo que cria progressivamente a cidade, é a cidade que cria o campo. Não é mais o Estado que supõe um modo de produção, mas o inverso, é o Estado que faz da produção um “modo”. As derradeiras razões para se supor um desenvolvimento progressivo se anulam. É como as sementes num saco: tudo começa por uma mistura ao acaso. A “revolução estatal e urbana” pode ser paleolítica e não neolítica, como acreditava Childe. (p. 126)

Coexistência de devires (primitivos, estatais, nômades) e não evolucionismo histórico

No entanto, não se trata de inferir daí uma evolução, mesmo em ziguezague, que iria dos primitivos aos Estados, dos Estados às máquinas de guerra nômades: ou pelo menos o ziguezague não é sucessivo, mas passa pelos lugares de uma topologia que define aqui sociedades primitivas, lá Estados, acolá máquinas de guerra. Mesmo quando o Estado se apropria da máquina de guerra, mudando ainda sua natureza, é um fenômeno de transporte, de transferência, e não de evolução. O nômade só existe em devir e em interação; mas o primitivo também. A história tão-somente traduz em sucessão uma coexistência de devires. E as coletividades podem ser transumantes, semisedentárias, sedentárias ou nômades, sem que isso faça delas estados preparatórios do Estado, que, aliás, já se encontra ali, alhures ou ao lado. (p. 128)

Anterioridade do devir-Estado nas sociedades sem Estado (Urstaat?)

Do mesmo modo, no campo de que nos ocupamos, não basta dizer que o Estado neolítico ou mesmo paleolítico, uma vez surgido, reage sobre o mundo circundante dos coletores-caçadores; ele já age antes de aparecer, como o limite atual que essas sociedades primitivas conjuram por sua conta, ou como o ponto para o qual elas convergem, mas que não atingiriam sem se aniquilarem. Há, ao mesmo tempo, nessas sociedades, vetores que vão em direção ao Estado, mecanismos que o conjuram, um ponto de convergência repelido, posto para fora à medida que se aproxima dele. Conjurar é também antecipar. (p. 128-9)

Força centrípeta e centrífuga do Estado nas sociedades primitivas (instáveis)

Uma vez surgido, o Estado reage sobre os coletores-caçadores, impondo-lhes a agricultura, a criação de animais, uma divisão acentuada do trabalho, etc: portanto, sob a forma de uma onda centrífuga ou divergente. Mas, antes de aparecer, o Estado já age sob a forma da onda convergente ou centrípeta dos coletores-caçadores, onda que se anula precisamente no ponto de convergência que marcaria a inversão dos signos ou a aparição do Estado (donde a instabilidade intrínseca e funcional dessas sociedades primitivas). (p. 129)

14: Jean Robert destaca essa noção de uma “inversão dos signos e das mensagens”: “Numa primeira fase, as informações circulam principalmente da periferia para o centro, mas, a partir de um certo ponto crítico, a cidade emite na direção do mundo rural mensagens cada vez mais imperativas” e se torna exportadora (Décoloniser l’espace). (p. 129)

Limiar de consistência do Estado nas sociedades primitivas (Estado != cidade)

Há mecanismos coletivos que, ao mesmo tempo, conjuram e antecipam a formação de um poder central. Este aparece, então, em função de um limiar ou de um grau tal que o que é antecipado toma consistência ou não, o que é conjurado deixa de sê-lo e acontece. E esse limiar de consistência, ou de constrangimento, não é evolutivo, ele coexiste com seu aquém. Mais do que isso, seria preciso distinguir os limiares de consistência: a cidade e o Estado não são a mesma coisa, qualquer que seja sua complementaridade. (p. 129-30)

A “revolução urbana” e a “revolução estatal” podem coincidir, mas não se confundir. Nos dois casos, há um poder central, mas não é a mesma figura. Certos autores souberam distinguir o sistema imperial ou palaciano (palácio-templo) e o sistema citadino, urbano. Há a cidade nos dois casos, mas, num caso, a cidade é uma excrescência do palácio ou templo, no outro o palácio, o templo é uma concreção da cidade. Num caso, a cidade por excelência é a capital, no outro, é a metrópole. (p. 130)

Cidade como rede (trans-consistência)

A cidade é o correlato da estrada. Ela só existe em função de uma circulação e de circuitos; ela é um ponto assinalável sobre os circuitos que a criam ou que ela cria. Ela se define por entradas e saídas, é preciso que alguma coisa aí entre e daí saia. Ela impõe uma frequência. Ela opera uma polarização da matéria, inerte, vivente ou humana; ela faz com que o phylum, os fluxos passem aqui ou ali, sobre as linhas horizontais. E um fenômeno de trans-consistência, é uma rede, porque ela está fundamentalmente em relação com outras cidades. (p. 131)

Ela representa um limiar de desterritorialização, pois é preciso que o material qualquer seja suficientemente desterritorializado para entrar na rede, submeter-se à polarização, seguir o circuito de recodificação urbana e itinerária. (p. 131)

As cidades são pontos-circuitos de toda natureza, que fazem contraponto sobre as linhas horizontais; elas operam uma integração completa, mas local, e de cidade em cidade. Cada uma constitui um poder central, mas de polarização ou de meio, de coordenação forçada. Daí a pretensão igualitária desse poder, qualquer que seja a forma que ele assuma: tirânica, democrática, oligárquica, aristocrática... O poder da cidade inventa a ideia de magistratura, muito diferente do funcionário de Estado. Mas quem dirá onde está a maior violência civil? (p. 132)

Estado como vertical (x horizontal na cidade), intraconsistente (x transconsistente). Ressonância e recorrência no Estado.

Com efeito, o Estado procede de outra forma: é um fenômeno de intraconsistência. Ele faz ressoar juntos os pontos, que não são forçosamente já cidades-polos, mas pontos de ordem muito diversa, particularidades geográficas, étnicas, linguísticas, morais, econômicas, tecnológicas... Ele faz ressoar a cidade com o campo. Ele opera por estratificação, ou seja, forma um conjunto vertical e hierarquizado que atravessa as linhas horizontais em profundidade. Ele só retém, portanto, tais e tais elementos cortando suas relações com outros elementos que, então, se tornam exteriores, inibindo, retardando ou controlando essas relações; se o Estado tem ele mesmo um circuito, é um circuito interior que depende primeiro da ressonância, é uma zona de recorrência que se isola assim do resto da rede, pronto a controlar ainda mais estritamente as relações com esse resto. (p. 132)

Também o poder central do Estado é hierarquizado e constitui um funcionariato; o centro não está no meio, mas no alto, uma vez que ele só pode reunir o que isola por subordinação. Certamente existe uma multiplicidade de Estados não menos que de cidades, mas não é o mesmo tipo de multiplicidade: há tantos Estados quantos cortes verticais em profundidade, cada um separado dos outros, enquanto a cidade é inseparável da rede horizontal das cidades. Cada Estado é uma integração global (e não local), uma redundância de ressonância (e não de frequência), uma operação de estratificação do território (e não de polarização do meio). (p. 133)

Pressuposição recíproca da cidade e do Estado. Possibilidade de emancipação da cidade.

É vão perguntar o que vem primeiro, a cidade ou o Estado, a revolução urbana ou estatal, uma vez que os dois estão em pressuposição recíproca. (p. 133)

A única questão que se coloca é a da possibilidade de uma relação inversa no seio dessa reciprocidade, pois, se o Estado arcaico imperial comporta necessariamente cidades consideráveis, essas cidades permanecem ainda mais subordinadas a ele porque o Palácio guarda o monopólio do comércio exterior. Ao contrário, a cidade tende a se emancipar quando a própria sobrecodificação do Estado provoca fluxos descodificados. Uma descodificação se junta à desterritorialização e a amplifica: a recodificação necessária passa então por uma certa autonomia das cidades, ou diretamente por cidades comerciantes e corporativas liberadas da forma-Estado. É nesse sentido que surgem cidades que não têm mais relação com sua própria terra, porque elas garantem o comércio entre impérios ou, melhor, constituem elas mesmas com outras cidades uma rede comercial livre. Há, portanto, uma aventura própria das cidades nas zonas mais intensas de descodificação: foi assim no mundo egeu da Antiguidade, no mundo ocidental da Idade Média e da Renascença. (p. 134)

Antecipação do capitalismo pelas cidades livres do Estado. Capitalismo fruto de fluxos descodificados na forma-Estado ocidental.

E não se poderia dizer que o capitalismo é o fruto das cidades, e que surge quando uma recodificação urbana tende a substituir a sobrecodificação do Estado? Mas isso não seria verdadeiro. Não são as cidades que criam o capitalismo. É que as cidades comerciantes e bancárias, com sua improdutividade, sua indiferença ao subúrbio, não operam uma recodificação sem inibir também a conjugação geral dos fluxos descodificados. Se é verdade que elas antecipam o capitalismo, por sua vez elas não o antecipam sem conjurá-lo. Elas estão aquém desse novo limiar. (p. 134)

É preciso, portanto, estender a hipótese de mecanismos ao mesmo tempo antecipadores e inibidores: esses mecanismos atuam nas cidades “contra” o Estado e “ contra” o capitalismo, e não somente nas sociedades primitivas. Finalmente, é pela forma-Estado e não pela forma-cidade que o capitalismo triunfará: quando os Estados ocidentais tiverem se tornado modelos de realização para uma axiomática de fluxos decodificados, e tiverem, por essa razão, reassujeitado as cidades. Como diz Braudel, “cada vez há dois corredores, o Estado, a Cidade” — duas formas e duas velocidades de desterritorialização —, “e, ordinariamente, o Estado ganha (...)., ele disciplinou as cidades, violentamente ou não, com um encarnecimento instintivo, por onde quer que volte-mos nossos olhos através da Europa inteira (...)., ele reuniu-se ao galope das cidades”. Sob a condição de sofrer o mesmo, contudo: com efeito, se é o Estado moderno que dá ao capitalismo seus modelos de realização, o que se encontra assim realizado é uma axiomática independente, mundial, que é como uma só e mesma Cidade, megapólis ou “megamáquina” de que os Estados são partes, bairros. (p. 134-5)

19: Braudel, Civilisation matérielle et capitalisme, pp. 391-400 (acerca das relações cidade-Estado no Ocidente). E, como assinala Braudel, uma das razões da vitória dos Estados sobre as cidades a partir do século XV é que só o Estado tem a faculdade de se apropriar plenamente da máquina de guerra: por recrutamento territorial de homens, investimento material, industrialização da guerra (é nas manufaturas de armas mais que nas fábricas de alfinetes que a produção em série e a divisão mecânica aparecem). As cidades comerciantes, ao contrário, têm necessidade de guerras rápidas, recorrem a mercenários, c podem tão somente acondicionar a máquina de guerra. (p. 135)

Processos maquínicos -> modos de produção (conjuração-antecipação, aparelhos de captura, instrumentos de polarização, máquinas de guerra)

Nós definimos as formações sociais por processos maquínicos e não por modos de produção (que, ao contrário, dependem dos processos). Assim as sociedades primitivas se definem por mecanismos de conjuração-antecipação; as sociedades com Estado se definem por aparelhos de captura; as sociedades urbanas, por instrumentos de polarização; as sociedades nômades, por máquinas de guerra; as organizações internacionais, ou antes, ecumênicas, se definem enfim pelo englobamento de formações sociais heterogêneas. Ora, precisamente porque esses processos são variáveis de coexistência que constituem o objeto de uma topologia social, é que as diversas formações correspondentes coexistem. (p. 135)

E elas coexistem de dois modos, de maneira extrínseca e de maneira intrínseca. De um lado, com efeito, as sociedades primitivas não conjuram a formação de império ou de Estado sem antecipá-la, e não a antecipam sem que ela já esteja ali, fazendo parte de seu horizonte. Os Estados não operam captura sem que o capturado coexista, resista nas sociedades primitivas, ou fuja sob novas formas, cidades, máquinas de guerra... A composição numérica das máquinas de guerra se superpõe à organização de linhagem primitiva e, simultaneamente, se opõe à organização geométrica de Estado, à organização física da cidade. É essa coexistência extrínseca — interação — que se exprime por ela mesma nos conjuntos internacionais, pois estes certamente não esperaram o capitalismo para se formar: desde o neolítico, mesmo desde o paleolítico, encontram-se os vestígios de organizações ecumênicas que dão testemunho de um comércio à longa distância e que atravessam as mais diversas formações sociais (nós o vimos no caso da metalurgia). (p. 135-6)

É nesse sentido que chamaremos organização internacional tudo o que tem a aptidão de passar por formações sociais diversas, simultaneamente — Estados, cidades, desertos, máquinas de guerra, sociedades primitivas. (p. 136)

Isomorfia do capitalismo global (com realizações de capitalismo dominante, dominado e socialista)

Todavia, essa objeção só é parcialmente justa. Na medida em que o capitalismo constitui uma axiomática (produção para o mercado), todos os Estados e todas as formações sociais tendem a se tornar isomorfas, a título de modelos de realização: há tão-somente um mercado mundial centrado, o capitalista, do qual participam até mesmo os países ditos socialistas. A organização mundial, portanto, deixa de se passar “entre” formas heterogêneas, uma vez que ela assegura a isomorfia das formações. (p. 137)

Isomorfismo != homogeneidade (heterogeneidade nas realizações: isonomia central, polimorfia e heteromorfia periféricas)

Mas haveria erro em confundir o isomorfismo com uma homogeneidade. De um lado, a isomorfia deixa subsistir ou mesmo suscita uma grande heterogeneidade dos Estados (os Estados democráticos, os totalitários, e ainda mais os Estados “socialistas,” não são fachadas). De outro lado, a axiomática capitalista internacional só assegura efetivamente a isomorfia das formações diversas lá onde o mercado interno se desenvolve e se amplia, ou seja, “no centro”. Mas ela suporta, mais que isso, exige certa polimorfia periférica, visto que ela não se satura, visto que ela repele ativamente seus próprios limites: donde a existência de formações sociais heteromorfas na periferia, que não constituem certamente sobrevivências ou formas transicionais, uma vez que elas realizam uma produção capitalista ultramoderna (petróleo, minas, plantações, bens de equipamento, siderurgia, química..)., mas que não são menos précapitalistas, ou contra-capitalistas, em razão de outros aspectos de sua produção, e da inadequação forçada de seu mercado interno ao mercado mundial22. Quando ela se torna axiomática capitalista, a organização internacional continua a implicar a heterogeneidade das formações sociais, ela suscita e organiza seu “terceiro mundo”. (p. 137-8)

Coexistência intrínseca dos processos maquínicos

Não há somente coexistência externa das formações, há também coexistência intrínseca dos processos maquínicos. E que cada processo pode funcionar também sob uma outra “potência” que não a sua própria, ser retomado por uma potência que corresponde a um outro processo. (p. 138)

Potência como força de desterritorialização. Processos como subordinardor/subordinado às potências

Cada potência é uma força de desterritorialização que concorre com as outras e contra as outras (mesmo as sociedades primitivas têm seus vetores de desterritorialização). Cada processo pode passar sob outras potências, mas também subordinar outros processos à sua própria potência. (p. 138-9)

Marginalismo, limiar e limite

Podemos, então, estabelecer uma diferença conceituai entre o “limite” e o “limiar”, o limite designando o penúltimo, que marca um recomeço necessário, e o limiar o último, que marca uma mudança inevitável. É um dado econômico de toda empresa comportar uma avaliação do limite além do qual a empresa deveria modificar sua estrutura. O marginalismo pretende mostrar a frequência desse mecanismo do penúltimo: não somente os últimos objetos trocáveis, mas o último objeto produzível, ou mesmo o último produtor, o produtor-limite ou marginal, antes que mude o agenciamento. (p. 140)

Avaliação-antecipação do último nas economias primitivas (e não valor de uso ou de troca)

A troca é somente uma aparência: cada parceiro ou cada grupo aprecia o valor do último objeto receptível (objeto-limite) e a aparente equivalência decorre disso. A igualização resulta das duas séries heterogêneas, a troca ou a comunicação resulta dos dois monólogos ( palavrório) . Não há nem valor de troca nem valor de uso, mas avaliação do último de cada lado (cálculo de risco aferente a uma passagem do limite), uma avaliação-antecipação que dá conta do caráter ritual tanto quanto utilitário, do caráter serial tanto quanto de troca. (p. 141)

Antecipação e conjuração do último nas sociedades primitivas

Definimos anteriormente as sociedades primitivas pela existência de mecanismos de antecipação-cunjuração. Vemos melhor como esses mecanismos se constituem e se distribuem: é a avaliação do último como limite que constitui uma antecipação, a qual conjura ao mesmo tempo o último como limiar ou como final (novo agenciamento). (p. 142)

Exploração extensiva e intensiva (formas de estoque)

O estoque nos parece ter um correlato necessário: ou bem a coexistência de territórios explorados simultaneamente, ou bem a sucessão das explorações sobre um só e mesmo território. Eis que os territórios formam uma Terra, dão lugar a uma Terra. Tal é o agenciamento que comporta necessariamente um estoque e que constitui, no primeiro caso, uma cultura extensiva, no outro caso uma cultura intensiva (conforme o paradigma de Jane Jacobs). (p. 143)

A terra como ideia da cidade; propriedades da terra: apropriação e comparação.

A terra tem duas potencialidades de desterritorialização: suas diferenças de qualidade são comparáveis entre si, do ponto de vista de uma quantidade que vai lhes fazer corresponder porções de terra exploráveis; o conjunto das terras exploradas é apropriável, diferentemente da terra selvagem exterior, do ponto de vista de um monopólio que vai fixar o ou os proprietários do solo28. É a segunda potencialidade que condiciona a primeira. Mas eram as duas juntas que o território conjurava, territorializando a terra, e que se efetuam agora graças ao estoque e no agenciamento agrícola, por desterritorialização do território. A terra apropriada e comparada retira dos territórios um centro de convergência situado fora; a terra é uma ideia da cidade. (p. 144-5)

Trabalho como ação livre quantitativamente comparada. Trabalho como atividade estocada. Trabalhador como ativante estocado.

A renda não é o único aparelho de captura. É que o estoque não tem somente por correlato a terra, sob o duplo aspecto da comparação das terras e da apropriação monopolista da terra; ele tem por outro correlato o trabalho, sob o duplo aspecto da comparação das atividades e da apropriação monopolista do trabalho (sobretrabalho). Com efeito, ainda aqui, é em função do estoque que as atividades do tipo “ação livre” vão ser comparadas, remetidas e subordinadas a uma quantidade homogênea e comum que se nomeia trabalho. Não somente o trabalho concerne ao estoque, seja sua constituição, seja sua conservação, seja sua reconstituição, seja sua utilização, mas o próprio trabalho é atividade estocada, assim como o trabalhador é um “ativante” estocado. E mais, mesmo quando o trabalho é bem separado do sobretrabalho, não se pode tomá-los por independentes: não há um trabalho dito necessário e um sobretrabalho. O trabalho e o sobretrabalho são estritamente a mesma coisa, um se dizendo da comparação quantitativa das atividades, o outro da apropriação monopolista dos trabalhos pelo empreiteiro (não mais pelo proprietário). Mesmo quando eles são distinguidos e separados, como vimos, não há trabalho que não passe pelo sobretrabalho. (p. 145-6)

Inseparabilidade do trabalho com o sobretrabalho. Lucro como captura da atividade (pelo trabalho e pelo sobretrabalho).

O sobretrabalho não é o que excede o trabalho; ao contrário, o trabalho é o que se deduz do sobretrabalho e o supõe. É só aí que se pode falar de um valor-trabalho, e de uma avaliação que se apoia na quantidade de trabalho social, enquanto que os grupos primitivos estavam num regime de ação livre ou de atividade de variação contínua. No sentido de que ele depende do sobretrabalho e da mais-valia, o lucro do empreiteiro constitui um aparelho de captura, tanto quanto a renda do proprietário: não é somente o sobretrabalho que captura o trabalho, e não é somente a propriedade que captura a terra, mas o trabalho e o sobretrabalho são o aparelho de captura da atividade, como a comparação das terras e a apropriação da terra são o aparelho de captura do território. (p. 146)

A moeda como equivalência estabelecida por um aparelho de poder

Mas, independentemente do contexto e das particularidades desse exemplo, a moeda é sempre distribuída por um aparelho de poder, e em condições tais de conservação, de circulação, de rotação, que uma equivalência bens-serviços-dinheiro possa se estabelecer. (p. 147)

Aparelhos de captura

  • comparação/apropriação da terra: captura do território
  • comparação do trabalho/apropriação do sobretrabalho: captura da atividade
  • comparação dos objetos e bens (mercadorias), apropriação da emissão do equivalente geral (pelo imposto e pela moeda): captura da troca

Comparação direta e apropriação monopolista como operações dos aparelhos de captura

O que forma o aparelho de captura são as duas operações que se encontra a cada vez nos modos convergentes: comparação direta, apropriação monopolista. A comparação sempre supõe a apropriação: o trabalho supõe o sobretrabalho, a renda diferencial supõe a absoluta, a moeda de comércio supõe o imposto. O aparelho de captura constitui um espaço geral de comparação e um centro móvel de apropriação. Sistema muro branco-buraco negro, tal como vimos anteriormente constituindo o rosto do déspota. Um ponto de ressonância circula num espaço de comparação e, circulando, traça esse espaço. (p. 148)

Captura como diferença ou excesso. Mecanismo de captura como parte do conjunto em que a captura se efetua (?).

Assim, [[dada a exoisição sobre o modelo de Bernard Schmitt]], chamaremos Captura essa diferença ou esse excesso mesmo, que vão constituir o lucro, o sobretrabalho ou o sobreproduto: “Os salários nominais englobam tudo, mas os assalariados só conservam os rendimentos que eles conseguem converter em bens, e perdem os rendimentos captados pelas empresas”. Dir-se-á então que o todo estava bem distribuído aos “pobres”; mas, nessa estranha corrida de velocidade, são também os pobres que se acham extorquidos de tudo o que não conseguem converter: a captura opera uma inversão da onda ou do fluxo divisível. É precisamente a captura que é objeto de apropriação monopolista. E essa apropriação (pelos “ricos”) não vem depois: ela está incluída nos salários nominais, escapando simultaneamente aos salários reais. Ela está entre os dois, se insere entre a distribuição sem posse e a conversão por correspondência ou comparação; ela exprime a diferença de potência entre os dois conjuntos, entre B e B'. Finalmente, não há absolutamente mistério: o mecanismo de captura já faz parte da constituição do conjunto sobre o qual a captura se efetua. (p. 152)

Polícia (violência de direito) como captura e direito de captura

Mas, justamente, a polícia de Estado ou violência de direito é ainda diferente, uma vez que ela consiste em capturar ao mesmo tempo em que constitui um direito de captura. É uma violência estrutural, incorporada, que se opõe a todas as violências diretas. Definiu-se com frequência o Estado por um “monopólio da violência”, mas essa definição reenvia a uma outra, que determina o Estado como “estado do Direito” ( Rechtsstaat) . A sobrecodificação do Estado é precisamente essa violência estrutural que define o direito, violência “policial” e não guerreira. Há violência de direito cada vez que a violência contribui para criar aquilo sobre que ela se exerce ou, como diz Marx, cada vez que a captura contribui para criar aquilo que ela captura. É muito diferente da violência de crime. É por isso também que, ao inverso da violência primitiva, a violência de direito ou de Estado parece sempre se pressupor, uma vez que ela preexiste a seu próprio exercício: o Estado pode então dizer que a violência é “original”, simples fenômeno de natureza, e pela qual ele não é responsável, ele que só exerce a violência contra os violentos, contra os “criminosos” — contra os primitivos, contra os nômades, para fazer reinar a paz... (p. 154-5)

A sobrecodificação do estado arcaico gera fluxos descodificados que lhe escapam (o fazem evoluir?)

A razão de evolução [[do Estado]] é interna, sejam quais forem os fatores exteriores que a apoiem. O Estado arcaico não sobrecodifica sem liberar também uma grande quantidade de fluxos descodificados que vão lhe escapar. (p. 155)

O Estado ocidental como descodificação dos fluxos orientais

Em suma, os mesmos fluxos que são sobrecodificados no Oriente tendem a se descodificar na Europa, numa nova situação que é como o inverso ou o correlato da outra. A mais-valia não é mais uma mais-valia de código (sobrecodificação), mas torna-se uma mais-valia de fluxo. É como se o mesmo problema tivesse recebido duas soluções: a solução do Oriente, depois a do Ocidente que se enxerta sobre a primeira e a tira do impasse, ao mesmo tempo em que a supõe. (p. 158-9)

E bem um outro polo de Estado que surge, e que se pode definir sumariamente. A esfera pública não caracteriza mais a natureza objetiva da propriedade, mas é antes o meio comum de uma apropriação que se tornou privada; entra-se, assim, nos mistos público-privado que constituem o mundo moderno. O laço se torna pessoal; relações pessoais de dependência, ao mesmo tempo entre proprietários (contratos) e entre propriedades e proprietários (convenções), duplicam ou substituem as relações comunitárias e de função; mesmo a escravidão não define mais a disposição pública do trabalhador comunal, mas a propriedade privada que se exerce sobre trabalhadores individuais38. O direito inteiro sofre uma mutação e se torna direito subjetivo, conjuntivo, “tópico”: é que o aparelho de Estado se encontra diante de uma nova tarefa, que consiste menos em sobrecodificar fluxos já codificados que em organizar conjunções de fluxos descodificados como tais. O regime de signos mudou, portanto: sob todos esses aspectos, a operação do “significante” imperial dá lugar a processos de subjetivação; a servidão maquínica tende a ser substituída por um regime de sujeição social. (p. 159)

Capitalismo como Subjetividade global

É que a pressão dos fluxos desenha em contorno o capitalismo, mas, para realizá-lo, é preciso toda uma integral de fluxos descodificados, toda uma conjugação generalizada que transborda e reverte os aparelhos precedentes. Com efeito, quando se trata, para Marx, de definir o capitalismo, ele começa por invocar o advento de uma só Subjetividade global e não qualificada, que capitaliza todos os processos de subjetivação, “todas as atividades sem distinção”: “a atividade produtora em geral”, “a essência subjetiva única da riqueza...”. E esse Sujeito único se exprime agora num Objeto qualquer, não mais num tal ou qual estado qualitativo: “Com a universalidade abstrata da atividade criadora de riqueza, tem-se ao mesmo tempo a universalidade do objeto enquanto riqueza, o produto somente ou o trabalho somente, mas enquanto trabalho passado, materializado” (p. 161)

Capitalismo como sujeito-universal e objeto-qualquer

A circulação constitui o capital como subjetividade adequada à sociedade inteira. Ora, justamente, essa nova subjetividade social só pode constituir-se à medida que os fluxos descodificados transbordam suas conjunções e atingem um nível de descodificação que os aparelhos de Estado não podem mais alcançar: é preciso, por um lado, que o fluxo de trabalho não seja mais determinado na escravidão ou na servidão, mas se torne trabalho livre e nu; é preciso, por outro lado, que a riqueza não seja mais determinada como fundiária, negociante, financeira, e se torne capital puro, homogêneo e independente. Sem dúvida, esses dois devires pelo menos (pois outros fluxos concorrem também) fazem intervir muitas contingências e fatores diferentes sobre cada uma das linhas. Mas é sua conjugação abstrata de uma vez que constituirá o capitalismo, fornecendo um ao outro um sujeito-universal e um objeto-qualquer. O capitalismo se forma quando o fluxo de riqueza não qualificado encontra o fluxo de trabalho não qualificado e se conjuga com ele4 (p. 161)

Capitalismo como axiomática geral dos flucos descodificados. Direito -> axiomática.

É isso que as conjunções precedentes, ainda qualitativas ou tópicas, haviam sempre inibido (os dois principais inibidores eram a organização feudal do campo e a organização corporativa das cidades). É o mesmo que dizer que o capitalismo se forma com uma axiomática geral dos fluxos descodificados. “ O capital é um direito ou, para ser mais preciso, uma relação de produção que se manifesta como um direito e, como tal, é independente da forma concreta que ele reveste a cada momento de sua função produtiva”. (p. 161-2)

A propriedade privada não exprime mais o laço da dependência pessoal, mas a independência de um Sujeito que constitui agora o único laço. É uma grande diferença na evolução da propriedade privada: quando ela mesma se apoia sobre direitos, em vez de o direito fazê-la apoiar-se sobre a terra, as coisas ou as pessoas (donde, notadamente, a célebre questão da eliminação da renda fundiária no capitalismo). Novo limiar de desterritorialização. E, quando o capital torna-se assim um direito ativo, é toda a figura histórica do direito que muda. O direito deixa de ser a sobrecodificação de costumes, como no império arcaico; ele não é mais um conjunto de tópicos, como nos Estados evoluídos, nas cidades e nas feudalidades; assume cada vez mais a forma direta e os caracteres imediatos da axiomática, como se vê em nosso “código” civil. (p. 162)

Ordem isomorfica que incluiria até mesmo Estados ditos socialistas na axiomática capitalista. Há somente um mercado mundial capitalista.

Mesmo os Estados ditos socialistas são isomorfos, na medida em que não há senão um só mercado mundial, capitalista. (p. 166)

Axiomática geral (supõe a isomorfia dos Estados)

Realizações concretas:

  • isomorfia (Estados capitalistas dominantes)
  • polimorfia (Estados capitalistas dominados)
  • heteromorfia (Estados socialistas)

Estado como modelo de realização para a axiomática capitalista (homogeneidade qualitativa e concorrência quantitativa do capital abstrato).

É bem sob essa forma de Estado-nação, com todas as diversidades possíveis, que o Estado se torna modelo de realização para a axiomática capitalista, o que de modo algum equivale a dizer que as nações sejam aparências ou fenômenos ideológicos; ao contrário, as nações são as formas viventes e passionais onde primeiro se realizam a homogeneidade qualitativa e a concorrência quantitativa do capital abstrato. (p. 167)

Servidão maquínica e sujeição social

Distinguimos como dois conceitos a servidão maquínica e a sujeição social. Há servidão quando os próprios homens são peças constituintes de uma máquina, que eles compõem entre si e com outras coisas (animais, ferramentas), sob o controle e a direção de uma unidade superior. Mas há sujeição quando a unidade superior constitui o homem como um sujeito que se reporta a um objeto tornado exterior, seja esse objeto um animal, uma ferramenta ou mesmo uma máquina: o homem, então, não é mais componente da máquina, mas trabalhador, usuário..., ele é sujeitado à máquina, e não mais submetido pela máquina. Não que o segundo regime seja mais humano. Mas o primeiro regime parece remeter por excelência à formação imperial arcaica: os homens não são ali sujeitos, mas peças de uma máquina que sobrecodifica o conjunto (o que chamamos “escravidão generalizada”, por oposição à escravidão privada da Antiguidade, ou à servidão feudal). [[..., Lewis Mumford sobre a megamáquina ]] Certamente, é o Estado moderno e o capitalismo que promovem o triunfo das máquinas e, notadamente, das máquinas motrizes (ao passo que o Estado arcaico tinha no máximo máquinas simples); mas estamos falando, então, de máquinas técnicas, extrinsecamente definíveis. Justamente, não se é submetido à servidão pela máquina técnica, mas, sim, sujeitado. Nesse sentido, parece que, com o desenvolvimento tecnológico, o Estado moderno substituiu a servidão maquínica por uma sujeição social cada vez mais forte. Já a escravidão antiga e a servidão feudal eram procedimentos de sujeição. Quanto ao trabalhador “livre” ou nu do capitalismo, ele leva a sujeição à sua expressão mais radical, uma vez que os processos de subjetivação não entram mais nem mesmo nas conjunções parciais que interromperiam seu curso. Com efeito, o capital age como ponto de subjetivação, constituindo todos os homens em sujeitos, mas uns, os “capitalistas”, são como os sujeitos da enunciação que formam a subjetividade privada do capital, enquanto os outros, os “proletários”, são os sujeitos do enunciado, sujeitados às máquinas técnicas onde se efetua o capital constante. O regime de salariado poderá, portanto, levar a sujeição dos homens a um ponto inaudito, e mostrar uma particular crueldade, ele não terá menos razão de soltar seu grito humanista: não, o homem não é uma máquina, nós não o tratamos como uma máquina, certamente não confundimos o capital variável e o capital constante... (p. 167-9)

Capitalismo como empresa mundial de subjetivação

Mas, ao constituir uma axiomática dos fluxos descodificados é que o capitalismo aparece como uma empresa mundial de subjetivação. Ora, a sujeição social, como correlato da subjetivação, aparece muito mais nos modelos de realização da axiomática do que na própria axiomática. É no quadro do Estado-nação, ou das subjetividades nacionais, que se manifestam os processos de subjetivação e as sujeições correspondentes. (p. 169)

Servidão na máquina informacional (x sujeição na máquina térmica)

Se as máquinas motrizes constituíram a segunda idade da máquina técnica, as máquinas da cibernética e da informática formam uma terceira idade que recompõe um regime de servidão generalizado: “sistemas homens-máquinas”, reversíveis e recorrentes, substituem as antigas relações de sujeição não reversíveis e não recorrentes entre os dois elementos; a relação do homem e da máquina se faz em termos de comunicação mútua interior e não mais de uso ou de ação. (p. 169)

50: A ergonomia distingue os sistemas “homem-máquina” (ou postos de trabalho) e os sistemas “homens-máquinas” (conjuntos comunicantes de elementos humanos e não humanos). Ora, não é somente uma diferença de grau; o segundo ponto de vista não é uma generalização do primeiro: “a noção de informação perde seu aspecto antropocêntrico”, e os problemas não são de adaptação, mas de escolha de um elemento humano ou não humano segundo o caso. Cf. Maurice de Montmollin, Les systèmes hommes-machines, PUF. A questão não é mais adaptar, mesmo sob violência, mas localizar: onde é teu lugar? Mesmo enfermidades podem servir, em vez de ser corrigidas ou compensadas. Um surdo-mudo pode ser essencial num sistema de comunicação “homens-máquinas”. (p. 169)

Mais valia maquínica na automação. Normalização, modulação, modelização, informação (microagenciamentos).

Na composição orgânica do capital, o capital variável define um regime de sujeição do trabalhador (mais-valia humana) tendo por quadro principal a empresa ou a fábrica; mas, quando o capital constante cresce proporcionalmente cada vez mais, na automação, encontramos uma nova servidão, ao mesmo tempo que o regime de trabalho muda, que a mais-valia se torna maquínica e que o quadro se estende à sociedade inteira. Dir-se-á mesmo que um pouco de subjetivação nos distanciava da servidão maquínica, mas que muito nos reconduz a ela. Sublinhou-se recentemente a que ponto o exercício do poder moderno não se reduzia à alternativa clássica “repressão ou ideologia”, mas implicava processos de normalização, de modulação, de modelização, de informação, que se apoiam na linguagem, na percepção, no desejo, no movimento, etc, e que passam por microagenciamentos. (p. 169-70)

Tipologia dos Estados: arcaicos (sobrecodificação e servidão), pré-capitalistas? - cidades, feudos, monarquias, impérios evoluídos - (subjetivação e sujeição), modernos (sujeição social + servidão maquínica).

Podemos voltar às diversas formas de Estado do ponto de vista de uma história universal. Distinguimos três grandes formas: 1) os Estados arcaicos imperiais, paradigmas, que constituem uma máquina de servidão por sobrecodificação de fluxos já codificados (esses Estados têm pouca diversidade em razão de uma certa imutabilidade formal que vale para todos); 2) os Estados muito diversos entre si, impérios evoluídos, cidades, sistemas feudais, monarquias..., que procedem preferentemente por subjetivação e sujeição e constituem conjunções tópicas ou qualificadas de fluxos descodificados; 3) os Estados-nações modernos, que levam ainda mais longe a descodificação e que são como os modelos de realização de uma axiomática ou de uma conjugação geral dos fluxos (esses Estados combinam a sujeição social e a nova servidão maquínica, e sua diversidade mesma concerne à isomorfia, à polimorfia ou à heteromorfia eventuais dos modelos com relação à axiomática). (p. 171)

Identidade do contrato com a captura (correlação e indistinção absoluta entre formas-Estado)

Todo Estado implica, como dizia Hegel, “os momentos essenciais de sua existência enquanto Estado”. Não somente isso, mas há um único momento, no sentido de acoplamento de forças, e esse momento do Estado é captura, laço, nó, nexum, captura mágica. É preciso falar de um segundo polo, que operaria antes por pacto e contrato? Não será antes a outra força, tal que a captura forma o momento único do par? As duas forças são, pois, a sobrecodificação dos fluxos codificados e o tratamento dos fluxos descodificados. O contrato é uma expressão jurídica desse segundo aspecto: ele aparece como o processo de subjetivação, de que a sujeição é o resultado. Será preciso que o contrato vá até o fim, ou seja, que ele não se faça mais entre duas pessoas, mas entre si e si, na mesma pessoa, Ich = Ich, enquanto sujeita e soberana. Extrema perversão do contrato que restitui o mais puro dos nós. É o nó, é o laço, a captura, que atravessa assim uma longa história: primeiro o laço coletivo imperial, objetivo; depois todas as formas de laços pessoais subjetivos; enfim o Sujeito que se ata ele mesmo, e renova assim a mais mágica operação, “a energia cosmopolita que reverte toda barreira e todo laço para se colocar ela mesma como a única universalidade, a única barreira e o único laço”53. Mesmo a sujeição é apenas uma alternância para o momento fundamental do Estado, captura civil ou servidão maquínica. Seguramente o Estado não é nem o lugar da liberdade nem o agente de uma servidão forçada ou de uma captura de guerra. É preciso, então, falar de uma “servidão voluntária”? É como a expressão “captura mágica”: ela tem somente o mérito de sublinhar o aparente mistério. Há uma servidão maquínica, de que se dirá a cada vez que ela se pressupõe, que ela só aparece como já feita, e que não é mais “voluntária” do que “forçada”. (p. 172-3)

Incertezas na política estatal. Aproximações entre política e axiomática.

A política não é certamente uma ciência apodítica [[ demonstrável ~ necessidade lógica ]]. Ela procede por experimentação, tateamento, injeção, retirada, avanços, recuos. Os fatores de decisão e de previsão são limitados. Absurdo supor um sobregoverno mundial que decidiria em última instância. Não se chega nem mesmo a prever o aumento de uma massa monetária. Da mesma forma, os Estados são afetados por toda espécie de coeficientes de incerteza e de imprevisibilidade. (p. 173)

Galbraith e François Châtelet destacam o conceito de erros decisivos e constantes, que fazem a glória dos homens de Estado não menos que suas raras avaliações bem-sucedidas. Ora, esta é uma razão a mais para reaproximar política e axiomática, pois uma axiomática em ciência não é de modo algum uma potência transcendente, autônoma e decisória que se oporia à experimentação e à intuição. Por um lado, ela tem tateamentos, experimentações, modos de intuição que lhe são próprios. Sendo os axiomas independentes uns dos outros, pode-se adicionar axiomas, e até que ponto se pode fazê-lo (sistema saturado)? Pode-se retirar axiomas, e até que ponto (sistema “enfraquecido”)? Por outro lado, é próprio da axiomática chocar-se com proposições ditas indecidíveis, ou afrontar potências necessariamente superiores, que ela não pode dominar54. Enfim, a axiomática não constitui uma ponta da ciência, mas muito mais um ponto de parada, um restabelecimento da ordem a impedir que os fluxos semióticos descodificados, matemáticos e físicos, fujam por todos os lados. Os grandes axiomatistas são homens de Estado da ciência, que colmatam as linhas de fuga tão frequentes em matemática, que pretendem impor um novo nexum, mesmo que provisório, e fazem uma política oficial da ciência. São os herdeiros da concepção teoremática da geometria. (p. 173-4)

Intuicionismo x axiomática

Quando o intuicionismo se opôs à axiomática, não foi somente em nome da intuição, da construção e da criação, mas em nome de um cálculo de problemas, de uma concepção problemática da ciência, que não tinha menos abstração, mas implicava uma máquina abstrata bem diferente, trabalhando no indecidível e no fugidio. São os caracteres reais da axiomática que levam a afirmar que o capitalismo e a política atual são literalmente uma axiomática. Mas é precisamente por essa razão que nada está determinado de antemão. A esse respeito, pode-se fazer um quadro sumário dos “dados”. (p. 174)

54 São os dois grandes problemas da axiomática, historicamente: o encontro com proposições “indecidíveis” (enunciados contraditórios são igualmente indemonstráveis); o encontro com potências de conjuntos infinitos que escapam por natureza ao tratamento axiomático (“o contínuo, por exemplo, não pode ser concebido axiomaticamente na sua especificidade estrutural, uma vez que toda axiomática estabelecida comportará um modelo numerável”; cf. Robert Manche, p. 80). (p. 174)

55 A escola “intuicionista” (Brouwer, Heyting, Griss, Bouligand, etc). tem uma grande importância matemática, não porque ela fez valer os direitos irredutíveis da intuição, nem mesmo porque ela elaborava um construcionismo muito novo, mas porque desenvolve uma concepção de problemas e de um cálculo de problemas que rivaliza intrinsecamente com a axiomática e procede com outras regras (notadamente a propósito do terceiro excluído). (p. 174)

1 - Adjunção, substração

1. Adjunção, subtração — Os axiomas do capitalismo não são evidentemente proposições teóricas, nem fórmulas ideológicas, mas enunciados operatórios que constituem a forma semiológica do Capital e que entram como partes componentes nos agenciamentos de produção, de circulação e de consumo. Os axiomas são enunciados primeiros, que não derivam de um outro ou não dependem de um outro. Nesse sentido, um fluxo pode constituir o objeto de um ou vários axiomas (sendo que o conjunto dos axiomas constitui a conjugação dos fluxos); mas pode também não haver axiomas próprios, e seu tratamento ser apenas a consequência dos outros axiomas; ele pode, enfim, permanecer fora do campo, evoluir sem limites, ser deixado no estado de variação “selvagem” no sistema. Há no capitalismo uma tendência de adicionar perpetuamente axiomas. No fim da guerra de 1914-18, a influência conjugada da crise mundial e da revolução russa forçaram o capitalismo a multiplicar os axiomas, a inventar novos, no que concernia à classe trabalhadora, ao emprego, à organização sindical, às instituições sociais, ao papel do Estado, ao mercado externo e ao mercado interno. A economia de Keynes e o New Deal foram labo-ratórios de axiomas. Exemplos de novas criações de axiomas depois da Segunda Guerra Mundial: o plano Marshall, as formas de ajuda e de empréstimo, as transformações do sistema monetário. Não é somente em período de expansão ou de retomada que os axiomas se multiplicam. O que faz variar a axiomática, em relação aos Estados, é a distinção e a relação entre mercado externo e mercado interno. Há notadamente multiplicação de axiomas quando se organiza um mercado interno integrado que concorre com as exigências do mercado externo. Axiomas para os jovens, para os velhos, para as mulheres, etc. Poder-se-ia definir um polo de Estado muito geral, “social-democracia”, por essa tendência à adjunção, à invenção de axiomas, em relação com os domínios de investimento e de fontes de lucro: a questão não é a da liberdade ou da coerção, nem do centralismo ou da descentralização, mas da maneira que se domina os fluxos. Aqui, eles são dominados por multiplicação dos axiomas diretores. A tendência inversa não é menor no capitalismo: tendência a retirar, a subtrair axiomas. Acomoda-se a um número muito pequeno de axiomas que regulam os fluxos dominantes, sendo que os outros fluxos recebem um estatuto derivado, de consequência (fixado pelos “teoremas” que decorrem dos axiomas), ou são deixados num estado selvagem, que não exclui a intervenção brutal do poder de estado, ao contrário até. É o polo de estado “totalitarismo” que encarna essa tendência a restringir o número de axiomas, e que opera por promoção exclusiva do setor externo, apelo aos capitais estrangeiros, desenvolvimento de uma indústria voltada para a exportação de matérias brutas ou alimentares, ruína do mercado interno. o estado totalitário não é um máximo de estado, mas antes, segundo a fórmula de virilio, o estado mínimo do anarco-capitalismo (cf. chili). no limite, os únicos axiomas mantidos são o equilíbrio do setor externo, o nível das reservas e a taxa de inflação; “a população não é mais um dado, ela se tornou uma consequência”; quanto às evoluções selvagens, elas aparecem entre outras nas variações do emprego, nos fenômenos de êxodo rural, de urbanização-favelas, etc. — o caso do fascismo (“nacional-socialismo”) se distingue do totalitarismo, tendo em vista que ele coincide com o polo totalitário por esmagamento do mercado interno e pela redução dos axiomas. contudo, a promoção do setor externo não se faz de modo algum por apelo aos capitais externos e indústria de exportação, mas por economia de guerra, que acarreta um expansionismo estrangeiro em direção ao totalitarismo e uma fabricação autônoma de capital. quanto ao mercado interno, ele é efetuado por uma reserva, por uma produção específica de ersatz, de modo que o fascismo comporta também uma proliferação de axiomas, o que faz com que ele tenha sido frequentemente aproximado de uma economia keynesiana. acontece que é uma proliferação fictícia ou tautológica, um multiplicador por subtração, que faz cio fascismo um caso muito especial56. (p. 174-6)

56 Uma das melhores análises da economia nazista parece-nos ser a de Jean-Pierre Faye, Langages totalitaires, pp. 664-676: ele mostra como o nazismo é bem um totalitarismo, precisamente por seu Estado-mínimo, sua recusa de toda estatização da economia, sua compressão dos salários, sua hostilidade em relação aos grandes trabalhos públicos; porém, mostra, ao mesmo tempo, como o nazismo procede a uma criação de capital interno, a uma construção estratégica, a uma indústria de armamento que o fazem rivalizar ou por vezes mesmo confundir-se com uma economia de tendência socialista (“alguma coisa que parece assemelhar-se aos empréstimos suecos pregados por Myrdal tendo em vista grandes trabalhos, mas que é de fato e de pronto seu contrário, escrita da economia de armamento e da economia de guerra”, e a diferença correspondente entre “o empreiteiro de trabalhos públicos” e “o fornecedor do exército”, pp. 668, 674). (p. 176)

2 - Saturação

2. Saturação.Pode-se distribuir as duas tendências inversas dizendo que a saturação do sistema marca o ponto de inversão? Não, pois é antes a própria saturação que é relativa. Se Marx mostrou o funcionamento do capitalismo como uma axiomática, foi sobretudo no célebre capítulo sobre a baixa tendencial da taxa de lucro. O capitalismo é bem uma axiomática porque não tem leis que não sejam imanentes. Ele gostaria de fazer crer que se choca com os limites do Universo, com o limite extremo dos recursos e das energias. Mas ele se choca tão-somente com seus próprios limites (depreciação periódica do capital existente), e repele ou desloca apenas seus próprios limites (formação de um novo capital, em novas indústrias com forte taxa de lucro). É a história do petróleo e da energia nuclear, e os dois de uma só vez: e ao mesmo tempo que o capitalismo se choca com seus limites e que os desloca para colocá-los mais longe. Dir-se-á que a tendência totalitária, restringir os axiomas, corresponde ao afrontamento dos limites, enquanto que a tendência social-democrata corresponde ao deslocamento dos limites. Ora, uma não vai sem a outra, seja em dois lugares diferentes, mas coexistentes, seja em dois momentos sucessivos, mas estreitamente ligados, sempre presas uma à outra, e mesmo uma na outra, constituindo a mesma axiomática. Um exemplo típico seria o Brasil atual, com sua alternativa ambígua “totalitarismo-socialdemocracia”. Via de regra, os limites são tanto mais móveis quanto mais se retirem axiomas em certo lugar, mas adicionando-os além.Seria um erro desinteressar-se da luta no nível dos axiomas. Mas ocorre considerar-se todo axioma, no capitalismo ou num de seus Estados, como constituindo uma “recuperação”. Porém, esse conceito desencan-tado não é um bom conceito. Os remanejamentos constantes da axiomática capitalista, ou seja, as adjunções (enunciação de novos axiomas) e as retiradas (criação de axiomas exclusivos) são o objeto de lutas que de modo algum estão reservadas à tecnocracia. De todos os lados, com efeito, as lutas proletárias transbordam o quadro das empresas, que implicam, sobretudo, proposições derivadas. As lutas se apoiam diretamente nos axiomas que presidem as despesas públicas de Estado, ou mesmo que concernem a essa ou aquela organização internacional (por exemplo, uma firma multinacional pode planificar voluntariamente a liquidação de uma fábrica num país). O perigo, então, de uma burocracia ou de uma tecnocracia proletárias mundiais, que se encarregariam desses problemas, só pode ser ele mesmo conjurado na medida em que lutas locais tomem diretamente por alvos os axiomas nacionais e internacionais, precisamente no ponto de sua inserção no campo de imanência (potencialidade do mundo rural a esse respeito). Há sempre uma diferença fundamental entre os fluxos vivos e os axiomas que os subordinam a centros de controle e de decisão, que lhes fazem corresponder esse ou aquele segmento, que lhes medem os quanta. Mas a pressão dos fluxos vivos, e dos problemas que eles põem e impõem, deve se exercer no interior da axiomática, tanto para lutar contra as reduções totalitárias quanto para avançar e precipitar as adjunções, orientá-las e impedir sua perversão tecnocrática. (p. 177-8)

3 - Modelos, isomorfia (isomorfia, heteromorfia, polimorfia)

3. Modelos, isomorfia.Em princípio, todos os Estados são isomorfos, ou seja, são domínios de realização do capital em função de um só e mesmo mercado mundial externo. Mas uma primeira questão seria saber se a isomorfia implica uma homogeneidade ou mesmo uma homogeneização dos Estados. Sim, como se vê na Europa atual, no que concerne à justiça e à polícia, ao código de trânsito, à circulação de mercadorias, aos custos de produção, etc. Mas isso só é verdadeiro na medida em que há tendência a um mercado interno único integrado. De outro modo, o isomorfismo de maneira alguma implica a homogeneidade: há isomorfia, mas heterogeneidade entre Estados totalitários e sociais-democratas, toda vez que o modo de produção é o mesmo. As regras gerais a esse respeito são as seguintes: a consistência, o conjunto ou a unidade da axiomática são definidos pelo capital como “direito” ou relação de produção (para o mercado); a independência respectiva dos axiomas de modo algum contradiz esse conjunto, mas vem de divisões e setores do modo de produção capitalista; a isomorfia dos modelos, com os dois polos de adjunção e de subtração, volta à distribuição em cada caso do mercado interno e do mercado externo. — Mas trata-se aí de uma primeira bipolaridade que vale para os Estados do centro, e sob o modo de produção capitalista. O centro impôs-se uma segunda bipolaridade Oeste-Leste, entre os Estados capitalistas e os Estados socialistas burocráticos. Ora, embora essa nova distinção possa retomar certos traços da precedente (os Estados ditos socialistas sendo assimilados a Estados totalitários), o problema se coloca de outro modo. As numerosas teorias de “convergência”, que tentam mostrar uma certa homogeneização dos Estados do Leste e do Oeste, são pouco convincentes. Mesmo o isomorfismo não convém: há real heteromorfia, não somente porque o modo de produção não é capitalista, mas porque a relação de produção não é o Capital (seria antes o Plano). Contudo, se os Estados socialistas são ainda modelos de realização da axiomática capitalista é em função da existência de um só e único mercado mundial externo, que permanece aqui o fator decisivo, para além mesmo das relações de produção de que ele resulta. Pode mesmo acontecer que o plano burocrático socialista tenha como que uma função parasitária com relação ao plano do capital, que revela uma criatividade maior, do tipo “vírus”. — Enfim, a terceira bipolaridade fundamental é a do centro e da periferia (Norte-Sul). Em virtude da independência respectiva dos axiomas, pode-se dizer com Samir Amin que os axiomas da periferia não são os mesmos que os do centro57. Ainda aí, a diferença e a independência dos axiomas de modo algum comprometem a consistência da axiomática de conjunto. Ao contrário, o capitalismo central tem necessidade dessa periferia constituída pelo terceiro mundo, no qual ele instala uma grande parte de sua indústria mais moderna, onde ele não se contenta em investir capitais, mas que lhe fornece capital. Certamente, a questão da dependência dos Estados do terceiro mundo é evidente, mas ela não é a mais importante (ela é herdeira do antigo colonia-lismo). É evidente que mesmo a independência dos axiomas jamais garantiu a independência dos Estados, assegurando de preferência a divisão internacional do trabalho. A questão importante, ainda aí, é a da isomorfia com relação á axiomática mundial. Ora, em grande medida, há isomorfia entre os Estados Unidos e as tiranias mais sangrentas da América do Sul (ou bem entre a França, a Inglaterra, a RFA e certos Estados africanos). Todavia, a bipolaridade centro-periferia, Estados do centro e do terceiro mundo, por mais que retome por seu turno traços distintivos das duas bipolaridades precedentes, escapa-lhes também e levanta outros problemas. É que, numa vasta parte do terceiro mundo, a relação de produção geral pode ser o capital; e mesmo em todo o terceiro mundo, no sentido de que o setor socializado pode se servir dessa relação, retomá-la por sua conta nesse caso. Mas o modo de produção não é necessariamente capitalista, não somente nas formas ditas arcaicas ou transicionais, mas nos setores mais produtivos e de alta industrialização. Portanto, é bem um terceiro caso, compreendido dentro da axiomática mundial: quando o capital age como relação de produção, mas em modos de produção não capitalistas. Falar-se-á então de uma polimorfia dos Estados do terceiro mundo com relação aos Estados do centro. Trata-se de uma dimensão da axiomática não menos necessária que as outras: muito mais necessária mesmo, pois a heteromorfia dos Estados ditos socialistas foi imposta ao capitalismo que a digere mal ou bem, ao passo que a polimorfia dos Estados do terceiro mundo é parcialmente organizada pelo centro, como axioma de substituição da colonização.Reencontramos sempre a questão literal dos modelos de realização de uma axiomática mundial: a isomorfia dos modelos, em princípio, nos Estados do centro; a heteromorfia imposta pelo Estado socialista burocrático; a polimorfia organizada dos Estados do terceiro mundo. Ainda aí, seria absurdo crer que a inserção dos movimentos populares em todo esse campo de imanência esteja condenada de antemão, e supor, seja que há “bons” Estados que seriam democráticos, sociais-democratas, ou socialistas no outro extremo, seja, ao contrário, que todos os Estados se equivalem e são homogêneos. (p. 178-80)

57 Cf. a lista crítica dos axiomas da periferia, por Samir Amin: L’accumulation a l’écchelle mondiale pp. 373-376. (p. 180)

4 - A potência (política como guerra continuada - inversão de Clausewitz)

4. A potência.Suponhamos que a axiomática desprenda necessariamente uma potência superior àquela que ela trata, ou seja, aquela dos conjuntos que lhe servem de modelos. É como uma potência do contínuo, ligada à axiomática e que, contudo, a excede. Reconhecemos essa potência imediatamente como potência de destruição, de guerra, encarnada em complexos tecnológicos militares, industriais e financeiros, em continuidade uns com os outros. Por um lado, a guerra segue evidentemente o mesmo movimento que o do capitalismo: assim como o capital constante cresce proporcionalmente, a guerra se torna cada vez mais “guerra de material”, onde o homem não representa mais nem mesmo um capital variável de sujeição, mas um puro elemento de servidão maquínica. Por outro lado, e sobretudo, a importância crescente do capital constante na axiomática faz com que a depreciação do capital existente e a formação de um novo capital assumam um ritmo e uma amplitude que passam necessariamente por uma máquina de guerra encarnada agora nos complexos: esta participa ativamente das redistribuições do mundo exigidas pela exploração de recursos marítimos e planetários. Há um “limiar” contínuo da potência que acompanha cada vez a transposição dos “limites” da axiomática; como se a potência de guerra viesse sempre sobressaturar a saturação do sistema e a condicionasse. — Aos conflitos clássicos entre Estados do centro (e colonização periférica) se juntaram, ou antes se substituíram, duas grandes linhas conflituais, entre o Oeste e o Leste, entre o Norte e o Sul, se recortando entre si e recobrindo o conjunto. Ora, não somente o sobrearmamento do Oeste e do Leste deixa subsistir inteiramente a realidade das guerras locais, e lhes dá uma nova força e novos riscos; não somente ele funda a possibilidade “apocalíptica” de um afrontamento direto segundo os dois grandes eixos; mas parece também que a máquina de guerra assume um sentido específico suplementar, industrial, político, judiciário, etc. É bem verdade que os Estados, em sua história, não deixaram de se apropriar da máquina de guerra; e era ao mesmo tempo que a guerra, em sua preparação e sua efetuação, se tornava o objeto exclusivo da máquina, mas como guerra mais ou menos “limitada”. Quanto ao objetivo, ele permanecia o objetivo político dos Estados. Os diferentes fatores que tenderam a fazer da guerra uma guerra “total”, notadamente o fator fascista, marcaram o início de uma inversão do movimento: como se os Estados, após o longo período de apropriação, reconstituíssem uma máquina de guerra autônoma, através da guerra que eles faziam uns contra os outros. Mas essa máquina de guerra libertada ou desencadeada continuava a ter por objeto a guerra em ato, enquanto guerra tornada total, ilimitada. Toda a economia fascista se tornava economia de guerra, mas a economia de guerra tinha ainda necessidade da guerra total enquanto objeto. Desde então, a guerra fascista permanecia sob a fórmula de Clausewitz, “continuação da política com o acompanhamento de outros meios”, embora esses outros meios se tornassem exclusivos, ou o objetivo político entrasse em contradição com o objeto (donde a ideia de Virilio segundo a qual o Estado fascista era um Estado “suicida” mais que totalitário). Foi somente após a Segunda Guerra Mundial que a automatização, depois a automação da máquina de guerra, produziram seu verdadeiro efeito. Esta, em vista dos novos antagonismos que a atravessavam, não tinha mais a guerra por objeto exclusivo, mas tomava a cargo e por objeto a paz, a política, a ordem mundial, em suma, o objetivo. É aí que aparece a inversão da fórmula de Clausewitz: é a política que se torna continuação da guerra, é a paz que libera tecnicamente o processo material ilimitado da guerra total. A guerra deixa de ser a materialização da máquina de guerra, é a máquina de guerra que se torna ela mesma guerra materializada. Nesse sentido, não havia mais necessidade de fascismo. Os fascistas tinham sido só crianças precursoras, e a paz absoluta da sobrevivência vencia naquilo que a guerra total havia falhado. Estávamos já na terceira guerra mundial. A máquina de guerra reinava sobre toda a axiomática como a potência do contínuo que cercava a “economia-mundo”, e colocava em contato todas as partes do universo. O mundo tornava a ser um espaço liso (mar, ar, atmosfera) onde reinava uma só e mesma máquina de guerra, mesmo quando ela opunha suas próprias partes. As guerras tinham se tornado partes da paz. Ainda mais, os Estados não se apropriavam mais da máquina de guerra, eles reconstituíam uma máquina de guerra de que eles mesmos eram tão-somente partes. — Entre os autores que desenvolveram um senso apoca-líptico ou milenarista, coube a Paul Virilio ter sublinhado cinco pontos rigorosos: como a máquina de guerra tinha encontrado seu novo objeto na paz absoluta do terror ou da dissuasão; como ela operava uma “capitalização” técnico-científica; como essa máquina de guerra não era terrível em função da guerra possível que ela nos prometia como numa chantagem, mas, ao contrário, em função da paz real muito especial que ela promovia e já instalava; como essa máquina de guerra não tinha mais necessidade de um inimigo qualificado, mas, conforme as exigências de uma axiomática, se exercia contra o “inimigo qualquer”, interior ou exterior (indivíduo, grupo, classe, povo, acontecimento, mundo); como daí saía uma nova concepção da segurança como guerra materializada, como insegurança organizada ou catástrofe programada, distribuída, molecularizada58. (p. 180-2)

58 Paul Virilio, L’insecurité du territoire; Vitesse et politique; Défense populaire et luttes écologiques: é precisamente para além do fascismo e da guerra total que a máquina de guerra encontra seu objeto completo, na paz ameaçadora da dissuasão nuclear. F. aí que a reversão da fórmula de Clausewitz assume um sentido concreto, ao mesmo tempo que o Estado político tende a desfalecer e que a máquina de guerra se apodera de um máximo de funções civis (“colocar o conjunto da sociedade civil sob o regime da segurança militar”, “desqualificar o conjunto do hábitat planetário, despojando os povos de sua qualidade de habitante”, “apagar a distinção de um tempo de guerra e de um tempo de paz”: cf. o papel das mídias a esse respeito). Um exemplo simples seria fornecido por certas polícias européias, quando reclamam o direito de “atirar direto”: elas deixam de ser engrenagem do aparelho de Estado para tornarem-se peças de uma máquina de guerra. (p. 182)

5 - Terceiro incluído

59 Braudel mostra como esse centro de gravidade se constituirá no norte da Europa, mas ao fim de movimentos que, desde os séculos IX e X, fazem concorrer ou rivalizar os espaços europeus do Norte e do Sul (esse problema não se confunde com o da forma-cidade e da forma-Estado, mas o recorta). Cf. “Naissance d’une économie-monde”, em Urbi I, set. 1979. (p. 183)

5. Terceiro incluído.Que a axiomática capitalista tenha necessidade de um centro, e que esse centro se tenha constituído no Norte, em seguida a um longo processo histórico, ninguém o mostrou melhor que Braudel: “Só pode haver economia-mundo quando a rede tem malhas suficientemente cerradas e a troca é regular e volumosa o bastante para dar vida a uma zona central”59. Muitos autores consideram a esse respeito que o eixo Norte-Sul, centro-periferia, seja hoje ainda mais importante que o eixo Oeste-Leste, e mesmo o determine, principalmente. É o que exprime uma tese corrente, retomada e desenvolvida por Giscard d'Estaing: quanto mais as coisas se equilibram no centro entre o Oeste e o Leste, a começar pelo equilíbrio do sobrearmamento, mais elas se desequili-bram ou se “desestabilizam” do Norte ao Sul, e desestabilizam o equilíbrio central. É claro que, nessas fórmulas, o Sul é um termo abstrato que designa o terceiro mundo ou a periferia; e aliás, há Sul e terceiros mundos interiores ao centro. É claro também que essa desesta-bilização não é acidental, mas uma consequência (teoremática) dos axiomas do capitalismo e, principalmente, do axioma dito da troca desigual, indispensável a seu funcionamento. Também essa fórmula é a versão moderna da fórmula mais antiga que já valia para os impérios arcaicos, sob outras condições. Quanto mais o império arcaico sobreco-dificava os fluxos, mais suscitava fluxos descodificados que se voltavam contra ele e o forçavam a modificar-se. Agora, quanto mais os fluxos descodificados entram numa axiomática central, mais eles tendem a escapar para a periferia e a colocar problemas que a axiomática é incapaz de resolver ou de controlar (inclusive os axiomas especiais que ela adiciona para essa periferia). — Os quatro fluxos principais que atormentam os representantes da economia-mundo ou da axiomática são: o fluxo de matéria-energia, o fluxo de população, o fluxo alimentar e o fluxo urbano. A situação parece inextricável, porque a axiomática não para de criar o conjunto desses problemas, ao mesmo tempo que seus axiomas, mesmo que multiplicados, lhe retiram os meios de resolvê-los (por exemplo, a circulação e a distribuição que tornariam possível a alimentação do mundo). Mesmo uma social-democracia adaptada ao terceiro mundo não se propõe certamente a integrar toda uma população miserável a um mercado interno, mas, muito mais, a operar a ruptura de classe que selecionará os elementos integráveis. Os Estados do centro não têm somente relação com o terceiro mundo, não têm somente cada um deles um terceiro mundo exterior, mas há terceiros mundos interiores que assomam neles e os trabalham de dentro. Dir-se-á mesmo, sob certos aspectos, que a periferia e o centro trocam suas determinações: uma desterritorialização do centro, um descolamento do centro em relação aos conjuntos territoriais e nacionais faz com que as formações periféricas se tornem verdadeiros centros de investimento, enquanto as formações centrais se periferializam. As teses de Samir Amin são ao mesmo tempo reforçadas e relativizadas. Quanto mais a axiomática mundial instala na periferia uma indústria forte e uma agricultura altamente in-dustrializada, reservando provisoriamente ao centro as atividades ditas pós-industriais (automação, eletrônica, informática, conquista do espaço, sobrearmamento..)., mais ela instala no centro também zonas periféricas de subdesenvolvimento, terceiros mundos interiores, Sul interior. “Massas” da população abandonadas a um trabalho precário (contrato por empreitada, trabalho provisório ou biscate), e cuja subsistência oficial só é assegurada pelas alocações de Estado e salários tornados precários. Coube a pensadores como Negri, a partir do caso exemplar da Itália, fazer a teoria dessa margem interior, que tende cada vez mais a fundir os estu-dantes com os emarginati. 60. Esses fenômenos confirmam a diferença entre a nova servidão maquínica e a sujeição clássica, pois a sujeição permanecia centrada sobre o trabalho e remetia a uma organização bipolar, propriedade-trabalho, burguesia-proletariado, enquanto na servidão e na dominância central do capital constante, o trabalho parece es-tourar em duas direções: a do sobretrabalho intensivo que nem mesmo passa mais pelo trabalho, e a de um trabalho extensivo tornado precário e flutuante. A tendência totalitária de abandonar os axiomas do emprego e a tendência social-democrata de multiplicar os estatutos podem aqui se combinar, mas sempre para operar as rupturas de classe. Acentua-se ainda mais a oposição entre a axiomática e os fluxos que ela não consegue dominar. (p. 183-5)

6 - Minorias

6. Minorias. — Nossa era torna-se a era das minorias. Vimos várias vezes que estas não se definiam necessariamente pelo pequeno número, mas pelo devir ou a flutuação, ou seja, pelo desvio que as separa desse ou daquele axioma que constitui uma maioria redundante (“Ulisses ou o europeu médio de hoje, habitante das cidades”, ou então, como diz Yann Moulier, “o Trabalhador nacional, qualificado, macho e com mais de trinta e cinco anos”). Uma minoria pode comportar apenas um pequeno número; mas ela pode também comportar o maior número, constituir uma maioria absoluta, indefinida. É o que acontece quando autores, mesmo ditos de esquerda, retomam o grande grito de alarme capitalista: em vinte anos, “os Brancos” não formarão mais que 12% da população mundial... Eles não se contentam, assim, em dizer que a maioria vai mudar, ou já mudou, mas, antes, que ela é agitada por uma minoria proliferante e não numerável que pode destruir a maioria em seu conceito mesmo, isto é, enquanto axioma. Com efeito, o estranho conceito de não-branco não constitui um conjunto numerável. O que define então uma minoria não é o número, são as relações interiores ao número. Uma minoria pode ser numerosa ou mesmo infinita; do mesmo modo uma maioria. O que as distingue é que a relação interior ao número constitui no caso de uma maioria um conjunto, finito ou infinito, mas sempre numerável, enquanto que a minoria se define como conjunto não numerável, qualquer que seja o número de seus elementos. O que caracteriza o inumerável não é nem o conjunto nem os elementos; é antes a conexão, o “e”, que se produz entre os elementos, entre os conjuntos, e que não pertence a qualquer dos dois, que lhes escapa e constitui uma linha de fuga. Ora, a axiomática só manipula conjuntos numeráveis, mesmo que infinitos, enquanto as minorias constituem esses conjuntos “leves” não numeráveis, não axiomatizáveis, em suma, essas “massas”, essas multiplicidades de fuga ou de fluxo. — Seja o conjunto infinito dos não-brancos da periferia, ou o conjunto reduzido dos bascos, dos corsos, etc, vemos por toda parte as premissas de um movimento mundial: as minorias recriam os fenômenos “nacionalitários” que os Estados-nações se haviam encarregado de controlar e de sufocar. O setor socialista burocrático não é certamente poupado por esses movimentos e, como dizia Amalrik, os dissidentes não são nada, ou servem somente de peões na política internacional, se se lhes abstraem as minorias que agitam a URSS. Pouco importa que as minorias sejam incapazes de constituir Estados viáveis do ponto de vista da axiomática e do mercado, uma vez que elas promovem a longo prazo composições que não passam mais pela economia capitalista que pela forma-Estado. A resposta dos Estados, ou da axiomática, pode ser, evidentemente, conferir às minorias uma autonomia regional, ou federal, ou estatutária, em suma, adicionar axiomas. Mas, precisamente, esse não é o problema: o que haveria aí seria uma operação consistindo em traduzir as minorias em conjuntos ou subconjuntos numeráveis, que entrariam a título de elementos na maioria, que poderiam ser contados numa maioria. Do mesmo modo, um estatuto da mulher, um estatuto dos jovens, um estatuto dos trabalhadores precários..., etc. Pode-se mesmo conceber, na crise e no sangue, uma reversão mais radical que faria do mundo branco a periferia de um centro amarelo; essa seria sem dúvida toda uma outra axiomática. Mas nós falamos de outra coisa, que ainda assim não seria regulada: as mulheres, os não-homens, enquanto minoria, enquanto fluxo ou conjunto não numerável, não receberiam qualquer expressão adequada ao devirem elementos da maioria, ou seja, conjunto finito numerável. Os não-brancos não receberiam qualquer expressão adequada ao devirem uma nova maioria, amarela, negra, conjunto numerável infinito. É próprio da minoria fazer valer a potência do não-numerável, mesmo quando ela é composta de um só membro. É a fórmula das multiplicidades. Minoria como figura universal, ou devir de todo o mundo. Um devir mulher de nós todos, quer sejamos masculinos ou femininos. Um devir não-branco de nós todos, quer sejamos brancos, amarelos ou negros. — Ainda aí, não se trata de dizer que a luta no nível dos axiomas seja sem importância; ela é, ao contrário, determinante (nos níveis mais diferentes, luta das mulheres pelo voto, pelo aborto, pelo emprego; luta de regiões pela autonomia; luta do terceiro mundo; luta das massas e das minorias oprimidas nas regiões do Leste ou do Oeste...). Mas também há sempre um signo para mostrar que essas lutas são o índice de um outro combate coexistente. Por modesta que seja uma reivindicação, ela apresenta sempre um ponto que a axiomática não pode suportar, quando as pessoas protestam para elas mesmas levantarem seus próprios problemas e determinar, ao menos, as condições particulares sob as quais aqueles podem receber uma solução mais geral (ater-se ao Particular como forma inovadora). Ficamos sempre estupefatos com a repetição da mesma história: a modéstia das reivindicações de minorias, no começo, ligada à impotência da axiomática para resolver o menor problema correspondente. Em suma, a luta em torno dos axiomas é tanto mais importante quanto manifeste e cave ela mesma o desvio entre dois tipos de proposições: as proposições de fluxo e as proposições de axiomas. A potência das minorias não se mede por sua capacidade de entrar e de se impor no sistema majoritário, nem mesmo de reverter o critério necessariamente tautológico da maioria, mas de fazer valer uma força dos conjuntos não numeráveis, por pequenos que eles sejam, contra a força dos conjuntos numeráveis, mesmo que infinitos, mesmo que revertidos ou mudados, mesmo que implicando novos axiomas ou, mais que isso, uma nova axiomática. A questão não é de modo algum a anarquia ou a organização, nem mesmo o centralismo e a descentralização, mas a de um cálculo ou concepção dos problemas que concernem aos conjuntos não numeráveis, contra a axiomática dos conjuntos numeráveis. Ora, esse cálculo pode ter suas composições, suas organizações, mesmo suas centralizações, mas ele não passa pela via dos Estados nem pelo processo da axiomática, mas por um devir das minorias. (p. 185-8)

7 - Proposições indecidíveis

61 É uma das teses essenciais de Tronti, que determinou as novas concepções do “trabalhador-massa” e da relação com o trabalho: “Para lutar contra o capital, a classe trabalhadora deve lutar contra ela mesma enquanto capital; é o estágio máximo da contradição, não para os trabalhadores, mas para os capitalistas. (...). O plano do capital começa a andar em sentido oposto, não mais como desenvolvimento social, mas como processo revolucionário”. Cf. Ouvriers et capital, p. 322; e o que Negri chamou a Crise de VEtat-plan, Feltrinelli. (p. 185)

7. Proposições indecidíveis. — Objetar-se-á que a própria axiomática desprende a potência de um conjunto infinito não numerável: precisamente a de sua máquina de guerra. Contudo, parece difícil aplicá-la ao “tratamento” geral das minorias sem desencadear a guerra absoluta que ela supostamente conjura. Vimos também a máquina de guerra montar processos quantitativos e qualitativos, miniaturizações e adaptações que a tornam capaz de graduar seus ataques ou suas respostas, a cada vez em função da natureza do “inimigo qualquer” (indivíduos, grupos, povos...). Mas, nessas condições, a axiomática capitalista não para de produzir e de reproduzir o que sua máquina de guerra tenta exterminar. Mesmo a organização da fome multiplica os famintos tanto quanto os mata. Mesmo a organização dos campos, onde o setor “socialista” horrivelmente se distinguiu, não assegura a solução radical com que a potência sonha. O extermínio de uma minoria faz nascer ainda uma minoria dessa minoria. Malgrado a constância dos massacres, é relativamente difícil liquidar um povo ou um grupo, mesmo no terceiro mundo, desde que ele apresente conexões suficientes com elementos da axiomática. Sob outros aspectos ainda, pode-se predizer que os problemas imediatos da economia, consistindo em reformar o capital com relação a novos recursos (petróleo marinho, nódulos metálicos, matérias alimentares), não exigirão somente uma redistribuição do mundo que mobili-zará a máquina de guerra mundial e oporá suas partes em relação aos novos objetivos; assistiremos também provavelmente à formação ou reformação de conjuntos minoritários, em relação com as regiões concernentes. — De maneira geral, as minorias tampouco recebem solução para seu problema por integração, mesmo com axiomas, estatutos, autonomias, independências. Sua tática passa necessariamente por aí; mas, se elas são revolucionárias, é porque trazem um movimento mais profundo que recoloca em questão a axiomática mundial. A potência de minoria, de particularidade, encontra sua figura ou sua consciência universal no proletário. Mas, enquanto a classe trabalhadora se define por um estatuto adquirido ou mesmo por um Estado teoricamente conquistado, ela aparece somente como “capital”, parte do capital (capital variável) e não sai do plano do capital. Quando muito o plano se torna burocrático. Em compensação, é saindo do plano do capital, não parando de sair dele, que uma massa se torna sem cessar revolucionária e destrói o equilíbrio dominante dos conjuntos numeráveis. Não se entende bem o que seria um Estado-amazona, um Estado de mulheres, ou então um Estado de trabalhadores precários, um Estado do “recusado”. Se as minorias não constituem Estados viáveis, culturalmente, politicamente, economicamente, é porque a forma-Estado não convém, nem a axiomática do capital, nem a cultura correspondente. Viu-se frequentemente o capitalismo sustentar e organizar Estados não viáveis, segundo suas necessidades, e justamente para esmagar as minorias. Do mesmo modo, a questão das minorias é antes abater o capitalismo, redefinir o socialismo, constituir uma máquina de guerra capaz de responder à máquina de guerra mundial, com outros meios. — Se as duas soluções de extermínio e de integração não parecem possíveis, é em virtude da lei mais profunda do capitalismo: ele não para de colocar e repelir seus próprios limites, mas ele não o faz sem que ele próprio suscite fluxos em todos os sentidos que escapam à sua axiomática. Ele não se efetua nos conjuntos numeráveis que lhe servem de modelos sem constituir no mesmo golpe conjuntos não numeráveis que atravessam e convulsionam esses modelos. Ele não opera a “conjugação” dos fluxos descodificados e desterritorializados sem que os fluxos se dirijam ainda para mais longe, escapem tanto à axiomática que os conjuga quanto aos modelos que os reterritorializam, e tendam a entrar em “conexões” que desenham uma nova Terra, que constituem uma máquina de guerra cujo fim não é mais nem a guerra de extermínio nem a paz do terror generalizado, mas o movimento revolucionário (conexão de fluxos, composição de conjuntos não numeráveis, devir-minoritário de todo mundo). Não é uma dispersão ou um esmigalhamento: reencontramos bem mais a oposição de um plano de consistência com o plano de organização e de desenvolvimento do capital, ou com o plano socialista burocrático. Um construtivismo, um “diagramatismo”, opera em cada caso pela determinação das condições de problema e por liames transversais dos problemas entre si: ele se opõe tanto à automação dos axiomas capitalistas quanto à programação burocrática. Nesse sentido, o que chamamos “proposições indecidíveis” não é a incerteza das consequências que pertence necessariamente a todo sistema. É, ao contrário, a coexistência ou a inse-parabilidade disso que o sistema conjuga e disso que não para de lhe escapar segundo linhas de fuga elas mesmas conectáveis. O indecidível é por excelência o gérmen e o lugar das decisões revolucionárias. Acontece invocarmos a alta tecnologia do sistema mundial de servidão; porém, ou sobretudo, essa servidão maquínica abunda em proposições e movimentos indecidíveis que, longe de reenviar a um saber de especialistas juramentados, dão armas ao devir de todo mundo, devir-rádio, devir-eletrônico, devir-molecular...62 Não há luta que não se faça através de todas essas proposições indecidíveis, e que não construa conexões revolucionárias contra as conjugações da axiomática. (p. 188-90)

62 É um outro aspecto da situação atual: não mais as novas lutas ligadas ao trabalho e à evolução do trabalho, mas todo o domínio das chamadas “práticas alternativas” e da construção de tais práticas (as rádios livres seriam o exemplo mais simples, mas também as redes comunitárias urbanas, a alternativa à psiquiatria, etc). Sobre todos esses pontos e a ligação entre os dois aspectos, cf. Franco Berardi Bifo, Le ciel est enfin tombe sur la terre, Ed. du Seuil; e Les Untorelli, Ed. Recherches. (p. 190)


  1. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. 7.000 a.C. - Aparelho de captura. Em: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 5. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. p. 119–190.